quarta-feira, setembro 07, 2005

A mala do dote

Era pela mala do dote que se avaliava o verdadeiro valor de uma rapariga solteira. A mala era uma arca bastante grande, que as raparigas começavam a encher mal ganhavam o primeiro dinheiro no bordado.
"É esperta, trabalha muito. Ganha para se vestir e ainda para o dote!" Com esta simples frase estava gabada uma rapariga e talvez desenhada a sua futura sorte. O dote era comprado aos adelos de Gaula que passavam amiude com todo o género de artigos necessários para a casa.
Quase sempre, a primeira peça do dote era um cobertor. Também foi por aí que a minha mãe cmeçou a compor a mala do dote. Comprou um cobertor da marca vizela, que era a mais afamada na altura, pela quantia de 150 escudos. Uma colcha boa custa à volta de 250 escudos, custava muito a ganhar. A colcha dos noivos da minha mãe, por exemplo, custou 350 escudos.
Era essencial comprar uma peça inteira de pano cru, encomendada ao adelo. Era a partir dessa peça que se faziam os jogos de lençóis. Primeiro a peça era cortada em pedaços, na medida certa, depois lavada e posta a corar no mês de Abril, de forma a ir apanhando sol e chuva, e ir sofrendo o processo de branqueamento.
Comprar o dote era obrigatório, mesmo que se ficasse a dever dinheiro ao adelo, como muitas vezes acontecia. Era em vésperas do Natal que ele passava, sem mercadoria nenhuma, apenas com o metro de madeira na mão, a recolher o dinheiro que lhe era devido.
Quando uma rapariga fazia anos, as outras juntavam-se e compravam-lhe uma peça qualquer para juntar ao dote, gesto que seria devidamente retribuido nos aniversários seguintes.
A par das peças maiores, compradas ao adelo, as raparigas mais bem pensadas lançavam mãos à agulha e bordavam lençóis e fronhas, toalhas de mesa e de lava-mãos, e uma infinidade de toalhinhas para a cozinha, centros para as mesas do quarto-de-fora e tapetinhos para as mesas-de-cabeceira do quarto-da-cama. Entertanto, as camisas da noite eram encomendadas à mais habilidosa costureira do sítio.
O dote de cada rapariga não era segredo, porque elas mostravam umas às outras aquilo que iam guardando para rechearem a casa quando se casassem. Por isso é que toda a gente sabia com precisão quais as raparigas que tinham melhor dote, as que o tinham pior, e naturalmente as que não tinham nenhum. Daí a piada que acharam quando a Gaulesa (uma que vivia na nossa freguesia, e nada tem a ver com as gaulesas das outras histórias) afirmou: "A minha Maria tem uma mala cheia de dote." A rapariga ouviu a conversa e, ingenuamente, perguntou: "Onde, mãe?" E a Gaulesa respondeu: "Então não sabes? No fundo da caixa!"
Ora não havia de ser! A conversa nunca mais foi esquecida. A expressão entrou no vocabulário como uma forma de gracejar quando alguém quer fazer parecer que possui o que na verdade não tem. Ou até em contextos bem mais simples, quando se procura ou pergunta por algo que não existe ou não se sabe onde pára. "Onde?" "No fundo da caixa!"

Comments:
Dote...acho engraçada essa tradição,pena ter acabado,hoje em dia nenhuma rapariga se preocupa em fazer um "dote" para quando casar...os tempos mudam!
 
Lília hoje finalmente tive oportunidade e vi com "olhos de ver" o site, embora ainda tenha que ler melhor algumas expressões. A ideia está gira e tenho apreciado e reconhecido algumas expressões que também usam na Camacha, algumas que eu própria ainda pronuncio. Estive a reler algumas das expressões e significados para a minha mãe que logo as reconheceu. Esta expressão, em particular, fez-me lembrar o que ela me contava do quanto as raparigas casadoiras trabalhavam para o dote e fê-la recordar o seu próprio percurso. "Era mesmo assim", disse-me ela. Parabéns pela página, devia ser difundida a jovens e menos jovens pois estas expressões fazem parte da nossa história. Bem hajas!
 
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