quinta-feira, junho 02, 2005

Alcançar

Há três dias que eu não como
Há quatro não bebo vinho
Há cinco que eu não alcanço
Da tua boca um beijinho

A voz é bonita. É a da minha mãe. A quadra também é bonita, deve tê-la aprendido na infância distante, na altura em que faltava tudo menos cantigas. Havia pouca comida, havia só um vestido, e os pés andavam descalços, mas havia um infindo número de cantigas, para todos os casos e para todas as ocasiões, para todos os trabalhos, festas e ritmos.
"Mãe, o professor não mandou trabalho de casa, ouviste? Vamos ficar três dias sem fazer trabalhos. Três!" Com a excitação dos previstos dias de brincadeira, sem obrigações escolares, a minha menina carregou na forma como disse este "três" final.
Ao meu lado, a voz cristalina da minha mãe, de imediato se transformou nesta cantiga, entoada ao som de um brinco imaginário.

Há três dias que eu não como
Há quatro não bebo vinho
Há cinco que eu não alcanço
Da tua boca um beijinho

Quatro simples versos e muito se podia dizer sobre eles. Qual a falta maior? E a subjectividade do tamanho do tempo!
Calada, embrenhada nestes pensamentos, fixei-me na palavra "alcançar", que há tanto tempo não ouvia. Agora as pessoas preferem dizer "conseguir" em vez de "alcançar". Alcançar era mais bonito. A minha avó dizia: "Pega-te com Nossa Senhora do Monte. Eu já alcancei muitos milagres."
Também tenho saudades do outro sentido da palavra. Parece que já ninguém vai alcançar ninguém. Mas antes "ir alcançar alguém" fazia parte da rotina diária de qualquer pessoa, porque as veredas eram longas, os caminhoas dificeis, e havia talvez mais vontade de ajudar ou de estar com os outros.
Na vereda em frente da nossa casa, muito ao longe, onde as pessoas ficavam do tamanho de formigas, às vezes parava alguém e fazia um gesto na direcção da nossa casa. Havia sempre alguém que reparava no movimento da vereda, e que conseguia não só distinguir esse gesto, mas ´como distinguir quem era, pelo vestido que trazia, pela moda do cabelo, ou por outra qualquer indicação, talvez intenções ou voltas previamente anunciadas.
E lá ia alguém "alcançar". Encontravam-se a meio da vereda e a pessoa que tinha ido "alcançar" normalmente ajudava a trazer algum saco que pesava e oferecia companhia para o resto do caminho, que passava a ser mais leve, a ter mais sombra, a ser bem melhor de percorrer por já não ser solitário e porque a conversa distraía das piores subidas e num instante já estava passada a ribeira e o poço da fonte e só faltava a ladeira, depois de um descanso debaixo do castanheiro da Ti Carolina.
Durante anos, a minha mãe ia alcançar-me à paragem do autocarro, ao Valeparaíso, nos dias pequenos, em que anoitecia demasiado depressa. Levava um olho-de-boi e conversávamos durante a meia hora que demorava a percorrer o caminho de volta a casa. Por vezes, os dias ficavam grandes e era ainda dia, mas ela lá estava, junto á paragem do autocarro. Tínhamo-nos habituado àquela conversa diária por entre pinheiros e eucaliptos, ao cair da tarde.
Que saudades eu tenho de todas os significados e de todas as formas e concretizações deste verbo "alcançar".

Comments:
Tens cada ideia pequena!És uma «peste». Ninguém te consegue alcançar! Conceição
 
Vamos lá a ver se consegui enviar o comentário.
 
Quem trabalha sempre alcança, nem que seja uns pontapés na pança. MC
 
Acho que ele é tão atado que não alcança a piada.MC
 
Vou alcançar a minha irmã, com o olho de boi,porque as escadas para a minha casa são irregulares e as luzes do caminho estão queimadas.MC
 
Best regards from NY! Depakote+sr women pissing video clips
 
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