sexta-feira, março 25, 2005

Arranjar os jardins e comer inhame

Assim mandava a tradição e era o que fazíamos todos os anos, na sexta-feira santa. Tínhamos de arranjar os jardins, os quintais e as veredas que circundavam a casa: tirar todas as ervas daninhas, as folhas velhas, os galhos quebrados. Era um trabalho que fazíamos com gosto, mesmo nos bocadinhos de caminho empedrados, em que custava muito, mesmo com a ajuda da foice ou de facas afiadas, retirar a erva rija que se instalava entre as pedras.
Fazíamos com prazer esse trabalho que lembrava a semana santa e a preparação para as visitas do Espírito Santo. O que nos fazia falta era a música. Durante a sexta-feira santa a minha mãe não nos deixava ligar o rádio, e era uma frustração não poder ouvir a música pedida, no Posto Emissor ou no Cambado. Se decidíamos cantar, como alternativa, nova resonda: na sexta-feira santa não se deve cantar, nem fazer jogos de roda, nem brincadeiras que nos façam rir, explicava a minha mãe.
Era o dia do ano que mais custava a passar, embora fosse agradável passá-lo a mexer na terra, nas ervas, nas plantas. Às três da tarde, parávamos e ficávamos, em silêncio, muito atentas, porque nos diziam que a essa hora o céu escurecia sempre, a assinalar a hora da morte de Jesus na Cruz. O almoço sempre foi igual: semilhas, batatas e inhame, acompanhados de um pouco de bacalhau cozinho, com molho de azeite, vinagre, alho, salsa e cebola.
Este ano sinto-me a condizer com a tristeza do dia. Se ao menos tivesse um jardim, de onde pudesse retirar todas as ervas, ou caminhos estreitos e empedrados para limpar!
Ninguém me criticará se ligar o rádio, ou a televisão, nem sequer se cantar ou dançar. Mas não me apetece nada disso. Talvez o almoço, exactamente igual ao das outras trinta e seis sextas-feiras santas da minha vida, ajude a salvar este dia.

Comments:
Bonito texto, Lídia. Adorei lê-lo.

Abraço,
Paula

PS - Deste lado do mar é tão raro comer-se batata (batata-doce). E inhame nunca provei, acreditas? Apesar de ter nascido em Moçambique, onde muito disso se comia. Por cá é mesmo só semilhas, a que chamamos batata, provavelmente só para confundir! :)
 
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