quinta-feira, março 23, 2006

O roto e o esfarrapado

"Isso é o roto a falar do esfarrapado". Gosto desta expressão que hoje ouvi e, se fôssemos rigorosos, poderíamos utilizar praticamente todos os dias. O que não falta por aí são rotos a falar de esfarrapados.
Conheço outras expressões com o mesmo sentido e de uso muito mais restrito. Talvez se limitem ao meu sítio, quem sabe até ao círculo familiar. E são essas expressões mais raras que quero agora quero registar. Uma delas é: "uma frigideira mascarrando outra." E a outra: "Uma semilha comendo outra".
Com o mesmo significado, lembro-me de uma história que ouço a minha mãe contar desde pequena.
Um homem com um buraco no cotovelo da camisola passa por outro passa por outro homem com o sapato aberto à frente. Começa a rir, gozando da situação do sapato roto, e pergunta, com maldade: "De que ri o teu sapato?" O outro responde de imediato: "Do teu cotovelo."
Como é fácil falar do mal alheio! Como é fácil falar dos defeitos ou dos erros dos outros! Como é fácil criticar!
Também o Padre Agostinho, que durante a minha infância e adolescência esteve à frente das paróquias do Caniço e das Eiras, usava uma imagem interessante sempre que queria chamar a atenção dos paroquianos para este mau hábito de ver o alheio e não o que temos em casa.
Parece que estou a vê-lo, já muito idoso e cada vez mais rabugento, no altar que era partido ao meio por uma parede da igreja, olhando para o lado dos homens com um olho e para o lado das mulheres com outro, e fazendo com a mão direita um gesto que materializava a explicação. "Quando se aponta para alguém com um dedo, todos os outros apontam para nós mesmos". E lá estava a mão, a confirmar a imagem.
O olhar, no entanto, tem tendência a acompanhar o dedo que aponta, olhando sempre para os outros, pronto a descobrir a mínima falha passível de ser criticada. Os outros dedos, os que para nós apontam, são esquecidos.
"Isso é o roto a falar do esfarrapado". A pessoa que hoje ouvi utilizar esta expressão referia-se a uma única pessoa, mas no fundo lá no fundo falava de todos nós. Todos somos por vezes esfarrapados, frigideiras mascarradas ou semilhas. Todos apontamos erros que também cometemos, todos rimos de sapatos abertos tendo buracos no cotovelo da camisa.

Comments:
Conheço uma expressão similar "diz o roto ao nú: - porque não te vestes tu?". A lembrar a riqueza desta nossa língua. Posto que fosse necessário escolher sempre escolheria andar "nú(a)" a andar roto. É que andar nua é uma forma de andar que mais se aproxima da minha e eu sei que tu percebes!
E andar roto (esfarrapado)é uma forma de andar tão pouco digna. Antes nua, mil vezes nua ao sol, ao frio, à chuva mas digna!
 
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