segunda-feira, julho 25, 2005
Não ter um pé de flor à porta
"Ela nem sequer tem um pé de flôr à porta." Era desta forma figurada que antigamente se definiam as pessoas mal-arranjadas. Por mais humilde que fosse a casa, mesmo palheiro ou furna, o dever de qualquer mulher era tê-la limpa e com bonitas flores à volta. A ausência de flores bem cuidadas em vasos e em canteiros, rodeando a habitação, definia logo a mulher que habitava a casa: era uma mal-arranjada.
Cresci rodeada de flores: vasos encostados à casa, com orquídeas, azáleas, begónias das mais variadas qualidades, corações e rosetas. Àrvores do paraíso, cravinas, angélicas, roseiras e mais azáleas no jardim à frente do terreiro. Girassóis, cravos de muitas variedades, jupsofila e gerberas no poio abaixo do outro jardim. Teresinhas e margaridas na parte oeste do terreiro. Mimos de cores diferentes, fetos variados e perpétuas na subida das passadas. Mira ao cimo destas. Patas de cavalo e gigante. A cameleira grande. Os novelos azuis. As dálias no tempo delas. Primerosas no seu tempo. Luxíneas. Flores da festa.
Cresci rodeada de flores e imaginei-me assim a vida toda. Quando ouvia dizerem de alguém que nem sequer tinha um pé de flores à porta, pensava que isso, de certeza absoluta, nunca diriam de mim. Outras coisas diriam, mas isso, nem pensar. Imaginei-me a vida toda rodeada de verdes e de cores, muitas plantas, muitas flores, cada uma no seu tempo. Canteiros e vasos, grandes e pequenos, e bardos e entradas e beiras de poios e traseiras, flores em todos os cantos.
Não foi assim, afinal. Hoje quase se pode dizer que nem sequer tenho um pé de flor à porta, mas isso não faz de mim uma mal-arranjada. No tal tempo, o tempo em que o mal-arranjo se percebia na falta de flores cuidadas no exterior de uma qualquer casa, não se vivia em apartamentos. A verdade é que todos os casais, por mais humildes que fossem, conseguiam fazer nem que fosse "um quarto de casa". E bastava querer. Simplesmente querer. Bastava querer para ter à volta da casa terreira as tais flores anunciadoras da presença de uma mulher bem-arranjada.
Sem as flores que toda a vida sonhei plantar, em vasos grandes e pequenos, em canteiros, em bardos, em rodas de muros, em qualquer cantinho disponível, é assim que tenho de viver. A tristeza fica dentro de mim e faço no dia-a-dia tudo o que era suposto fazer. O que me salva é que a velha expressão está hoje esquecida. Já ningém diz, como sinónimo de uma pessoa mal-arranjada, "ela nem sequer tem um pé de flôr à porta."
Cresci rodeada de flores: vasos encostados à casa, com orquídeas, azáleas, begónias das mais variadas qualidades, corações e rosetas. Àrvores do paraíso, cravinas, angélicas, roseiras e mais azáleas no jardim à frente do terreiro. Girassóis, cravos de muitas variedades, jupsofila e gerberas no poio abaixo do outro jardim. Teresinhas e margaridas na parte oeste do terreiro. Mimos de cores diferentes, fetos variados e perpétuas na subida das passadas. Mira ao cimo destas. Patas de cavalo e gigante. A cameleira grande. Os novelos azuis. As dálias no tempo delas. Primerosas no seu tempo. Luxíneas. Flores da festa.
Cresci rodeada de flores e imaginei-me assim a vida toda. Quando ouvia dizerem de alguém que nem sequer tinha um pé de flores à porta, pensava que isso, de certeza absoluta, nunca diriam de mim. Outras coisas diriam, mas isso, nem pensar. Imaginei-me a vida toda rodeada de verdes e de cores, muitas plantas, muitas flores, cada uma no seu tempo. Canteiros e vasos, grandes e pequenos, e bardos e entradas e beiras de poios e traseiras, flores em todos os cantos.
Não foi assim, afinal. Hoje quase se pode dizer que nem sequer tenho um pé de flor à porta, mas isso não faz de mim uma mal-arranjada. No tal tempo, o tempo em que o mal-arranjo se percebia na falta de flores cuidadas no exterior de uma qualquer casa, não se vivia em apartamentos. A verdade é que todos os casais, por mais humildes que fossem, conseguiam fazer nem que fosse "um quarto de casa". E bastava querer. Simplesmente querer. Bastava querer para ter à volta da casa terreira as tais flores anunciadoras da presença de uma mulher bem-arranjada.
Sem as flores que toda a vida sonhei plantar, em vasos grandes e pequenos, em canteiros, em bardos, em rodas de muros, em qualquer cantinho disponível, é assim que tenho de viver. A tristeza fica dentro de mim e faço no dia-a-dia tudo o que era suposto fazer. O que me salva é que a velha expressão está hoje esquecida. Já ningém diz, como sinónimo de uma pessoa mal-arranjada, "ela nem sequer tem um pé de flôr à porta."
quarta-feira, julho 20, 2005
Uma pereira chumbando
É uma pereira do cedo, com peras muito redondas e pequenas. Fica no quintal de uma casa de Santana, daquelas à moda antiga, coberta de colmo quase até ao chão, com o telhado em bico, e o interior muito modesto.
À entrada do terreiro dessa casa de antigamente existe uma enorme ameixeira de São João. Uma ameixeira igual à que havia em casa dos meus avolitos quando eu era pequena, e que era o nosso primeiro sinal do Verão.
Passámos lá e eu parei a olhar para as ameixas iguais às que guardo na memória. Fiquei parada a olhar para elas, e exclamei, feliz como a criança que fui: «Ameixas de São João, mãe!» O dono da casa estava por ali, à entrada do terreiro, e ouviu-me. Estendeu as mãos para a ameixeira, e começou a apanhar ameixas de São João e a passá-las para as minhas mãos em concha.
Agradeci da melhor forma que pude, com um sorriso, e continuámos o caminho. Dei o dia por ganho graças àquele punhado de ameixas, com o bico pintado de encarnado, algumas ainda verdes, com o gosto ácido e bom, igual ao gosto da minha infância, que trago tão bem guardado no coração.
No regresso, passando junto à mesma casa, voltámos a admirar a ameixeira de São João e novamente as mãos encardidas e enrugadas se apressaram a apanhar ameixas. Parámos a conversar. Indagámos por uma pessoa do lugar, madrinha de uma tia minha, e apontaram para uma casa em frente, enquanto nos davam informações sobre o seu estado de saúde. E convidaram-nos a entrar na humilde casa de palha, com o seu cheiro característico, uma cama a um canto e uma enorme caixa de madeira no outro.
Quando nos vínhamos embora, voltaram a dar-me algumas ameixas de São João. Foi então que falámos sobre a pereira, a tal pereira do cedo, com peras muito redondas, que cresce um pouco abaixo da ameixeira de São João, na continuação do caminho.
A minha mãe quis saber se era aquela qualidade de peras que antigamente se utilizava para fazer colares. As peras eram secas e depois enfiadas em forma de colar, para vender nos arraiais. Não. Os donos da pereira não conhecem esse costume.
Enquanto falávamos, admirámos a árvore à nossa frente. A pereira está carregada de frutos de cima a abaixo, os galhos vergando-se de tanto peso. «Ela ‘tá chumbando até ao chão!» – afirma, com orgulho, o dono da pereira. É verdade, a pereira está chumbando! O dia, que já estava ganho há muito, com as primeiras ameixas de São João que me deram, tornou-se mais rico com a ressurreição desta palavra. É claro que a conhecia, mas ao tempo que não a ouvia dita, materializada.
Diz-se que uma árvore está chumbando quando está muito carregada de frutos. Está chumbando porque está pesada como chumbo, penso que essa é a explicação. «A pereira ‘tá chumbando até ao chão!» É verdade, sim senhor. Está chumbando e ainda bem.
À entrada do terreiro dessa casa de antigamente existe uma enorme ameixeira de São João. Uma ameixeira igual à que havia em casa dos meus avolitos quando eu era pequena, e que era o nosso primeiro sinal do Verão.
Passámos lá e eu parei a olhar para as ameixas iguais às que guardo na memória. Fiquei parada a olhar para elas, e exclamei, feliz como a criança que fui: «Ameixas de São João, mãe!» O dono da casa estava por ali, à entrada do terreiro, e ouviu-me. Estendeu as mãos para a ameixeira, e começou a apanhar ameixas de São João e a passá-las para as minhas mãos em concha.
Agradeci da melhor forma que pude, com um sorriso, e continuámos o caminho. Dei o dia por ganho graças àquele punhado de ameixas, com o bico pintado de encarnado, algumas ainda verdes, com o gosto ácido e bom, igual ao gosto da minha infância, que trago tão bem guardado no coração.
No regresso, passando junto à mesma casa, voltámos a admirar a ameixeira de São João e novamente as mãos encardidas e enrugadas se apressaram a apanhar ameixas. Parámos a conversar. Indagámos por uma pessoa do lugar, madrinha de uma tia minha, e apontaram para uma casa em frente, enquanto nos davam informações sobre o seu estado de saúde. E convidaram-nos a entrar na humilde casa de palha, com o seu cheiro característico, uma cama a um canto e uma enorme caixa de madeira no outro.
Quando nos vínhamos embora, voltaram a dar-me algumas ameixas de São João. Foi então que falámos sobre a pereira, a tal pereira do cedo, com peras muito redondas, que cresce um pouco abaixo da ameixeira de São João, na continuação do caminho.
A minha mãe quis saber se era aquela qualidade de peras que antigamente se utilizava para fazer colares. As peras eram secas e depois enfiadas em forma de colar, para vender nos arraiais. Não. Os donos da pereira não conhecem esse costume.
Enquanto falávamos, admirámos a árvore à nossa frente. A pereira está carregada de frutos de cima a abaixo, os galhos vergando-se de tanto peso. «Ela ‘tá chumbando até ao chão!» – afirma, com orgulho, o dono da pereira. É verdade, a pereira está chumbando! O dia, que já estava ganho há muito, com as primeiras ameixas de São João que me deram, tornou-se mais rico com a ressurreição desta palavra. É claro que a conhecia, mas ao tempo que não a ouvia dita, materializada.
Diz-se que uma árvore está chumbando quando está muito carregada de frutos. Está chumbando porque está pesada como chumbo, penso que essa é a explicação. «A pereira ‘tá chumbando até ao chão!» É verdade, sim senhor. Está chumbando e ainda bem.