tag:blogger.com,1999:blog-79094812024-03-13T20:52:28.213+00:00O rabo do gatomemória de palavras, expressões e outras curiosidades da linguagem da minha terra. sobre o "madeirense".Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.comBlogger690125tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-35373119705038007202014-07-26T18:41:00.002+01:002014-07-27T18:25:26.290+01:00dar no porcoA minha mãe olha pela janela do carro, admirada com tantas obras: túneis, estradas, viadutos, edifícios que ela nunca tinha visto, que nem sequer fazia ideia que existiam. O passeio teve o dom de lhe causar uma admiração rara. Depois suspirou. Suspirou um instante antes de ditar a sentença: "- Mesmo tinha de dar no porco"!<br />
Dar no porco. Como é possível que esta expressão popular me tenha passado ao lado durante tantos anos? Dar no porco é dar errado. Dar no porco é dar para o torto. <br />
É verdade que hoje em dia está tudo ao contrário, pois ora agora! Só depois de de ter vivido tantas coisas que deram no porco, aprendo este dito popular. <br />
Lembro-me e comento que na Alemanha o porco está associado à sorte. Cada terra com seu uso. <br />
Este passeio que tanta admiração causou à minha mãe deve ter já cerca de um ano. Se fosse hoje, mais admirada ainda ficaria. Cada vez mais porcos bailam por aqui e por ali, na nossa linda terra. Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-9243364138304312442014-07-16T12:02:00.000+01:002014-07-16T15:08:54.862+01:00o iróSempre que passávamos junto ao Poço do Ti João Duarte, fazíamos silêncio. Queríamos ir mais depressa mas andávamos devagar, quase pé ante pé. O meu pai e a minha mãe diziam: nunca venham para aqui, nem se cheguem ao pé do poço porque ele tem um iró. Nós olhámos para o poço e não víamos nada. Mas eles insistiam que ele vivia no fundo, no meio do lameiro, ao pé da bucha do poço. O meu pai estendia o braço esquerdo, e com o braço direito tentava fazer a medida do iró: "Tem pr'aí um metro de comprido." A parte mais assustadora era quando nos explicavam que caso caíssemos dentro do poço seríamos, sem dúvida, comidas pelo iró.<br />
Guardámos imenso respeito ao poço, junto ao qual tínhamos obrigatoriamente de passar quando às vezes, ao domingo, íamos às Fontes visitar os meus avós paternos. Eu perguntava sempre se era verdade que tinha lá um iró e eles diziam que sim e o meu pai voltava a calcular a medida do bicho. Mas a verdade é que eu duvidava. Duvidava até que existisse neste mundo algum animal chamado iró.<br />
Pensava comigo mesma que os meus pais tinham inventado a história do iró para evitar que nos aproximássemos demasiado do poço e caíssemos lá dentro. Havia muitos poços para guardar a água de rega, mas aquele era enorme, era o maior das redondezas, e fazia fronteira com o caminho estreito, o perigo era maior. O iró, para mim, era uma espécie de "velho da saca", a figura usada para obrigar as crianças a se comportarem bem, a comerem, a se lavarem, a irem dormir à hora certa. Secretamente, achava que os meus pais tinham sido inteligentes ao inventarem semelhante figura só para nos protegerem do perigo que o poço representava.<br />
Há pouco tempo lembrei-me da história do iró, confrontei os meus pais e, para meu espanto, havia de facto um iró no fundo do poço do Ti João Duarte, no meio do lameiro, perto da bucha do poço, que parecia uma cobra e devia ter à volta de um metro de comprimento. O iró é, afinal, uma enguia, uma espécie que eu julgava que nem sequer existia na ilha.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-71449170983830705202013-09-27T01:54:00.002+01:002013-09-27T02:19:27.720+01:00ver amores<br />
<br />
Fui ao mar para ver água<br />
ao jardim para ver flores<br />
à Igreja para ouvir missa<br />
ao adro p'ra ver amores<br />
<br />
Quadra popular recolhida no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço, no tempo em que o adro da igreja ainda era um lugar para ver amores. Tenho saudades desse tempo em que o mundo tinha o tamanho de um adro. Em que as pessoas trocavam olhares antes de entrarem e depois de saírem da missa. Em que um dia, depois de muitos domingos nesse jogo de trocarem olhares, talvez trocassem algumas palavras.<br />
Saudades do tempo em que estava tudo à vista, em que as pessoas falavam com os olhos e com palavras ditas mesmo de verdade, palavras com som. Da simplicidade desse tempo em que ninguém sonhava que um dia existiriam computadores e aquilo a que chamamos redes sociais.Estamos enganados.<br />
As verdadeiras redes sociais cabiam no adro de uma igreja. Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-83562794945264808712012-07-31T19:55:00.000+01:002012-08-19T20:18:40.293+01:00fura-se com uma agulha- Vai lá ver!<br />
O meu pai sorri, indicando o local onde improvisou, com a ajuda de um amigo, o curral para as cabras. <br />
São três. Uma maior e duas mais pequenas. <br />
- Aquela é filha, mas esta vê-se logo que não é!<br />
Junto à estrutura improvisada, discute-se o possível parentesco entre os três animais, comparando cores e tamanhos.<br />
- O que é que elas iam comer? Ardeu tudo...<br />
O meu pai justifica assim aquela compra inesperada, mas eu sei que mesmo que o dono das cabras não tivesse ficado sem nada que lhes deitasse, mais tarde ou mais cedo ele arranjaria maneira de arranjar uma cabrinha para comer silvados à volta de casa. <br />
Está-lhe no sangue. O porquinho, a cabrinha, as galinhas que já tivemos, os coelhos que já não temos.<br />
Demoramos um pouco junto ao curral, saboreando a quietude do fim da tarde, e inventariando de memória os locais ali à volta onde ainda deve ser possível conseguir-lhes algum alimento.<br />
- 'Tão magrinhas, vão engordar, garante o meu pai.<br />
Um dos animais, em particular, está magríssimo. É só pele e osso. <br />
Já no terreiro, quando o comento, aprendo com a sabedoria da minha mãe esta nova expressão popular: "Fura-se com uma agulha". <br />
Ao que me é dado perceber, esta expressão, sinónimo de magreza, só é utilizada quando quando nos queremos referir a animais. Bem pensado.<br />
<br />
Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-25380327098194100902012-02-22T20:07:00.000+00:002012-02-22T20:34:04.707+00:00entromizado" - Eu fiquei mesmo entromizado!"<br />Não me lembro de ter ouvido esta expressão durante a infância. Não me lembro de a ter ouvido nem da minha avó nem da minha mãe. Esta expressão veio ter comigo recentemente e de vez em quando dá um ar da sua graça, pela voz de alguns colegas de trabalho.<br />" - Fiquei entromizada!"<br />Explicam-me que entromizado é um sinónimo de impressionado, mas com algumas nuances. Utiliza-se perante uma atitude inesperada, algo que com que não contávamos, "mas mais no gozo".<br />Todos os dias fico entromizada com situações e atitudes que vejo à minha volta.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-89232256216249874262012-01-24T15:16:00.031+00:002012-01-24T15:43:33.704+00:00o despacho de DezembroA meio da manhã começou a cair uma chuvinha miúda mas persistente. Retiro a roupa do estendal. Delicio-me com o cheiro a terra. Reparo nas folhas lavadas das plantas, brilhantes. Já era mais do que tempo, a chuva é tão necessária e tardava. Penso nisto e alegro-me com a benção que cai do céu.<br />Penso nisto tudo mas falha-me um pormenor importante, ressuscitado por uma conversa dos meus pais.<br />- "Hoje é o despacho de Dezembro". Então não é? Os meus pais olham para o céu cinzento e para a chuvinha miúda e têm a certeza de que é este o tempo que deverá caractarizar o mês de Dezembro deste ano. Mas quando começamos a descer para o Funchal, já não chove, apesar do cinzento do céu, coberto de núvens. - "Aqui não chove, mas no Norte deve estar a chover bem!" Não se sabe.<br />O que se sabe é que segundo a tradição popular os primeiros doze dias de Janeiro representam os requerimentos para o tempo respeitante a cada um dos meses do ano e os doze dias seguintes representam os despachos, ou seja o tempo que realmente deverá caracterizar cada um dos doze meses. Seguindo este raciocínio, o dia 24 de Janeiro é de facto o despacho de Dezembro.<br />Dezembro de 2012 deverá ser um mês de céu cinzento, com algum chuva miudinha, mas pouca, muito pouca para aquilo que deveria ser no primeiro mês do Inverno.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-88709761967694909722012-01-11T00:40:00.020+00:002012-01-13T01:56:11.486+00:00o balançoSinto ainda a alegria que senti no dia em que o meu avôlito nos fez um balanço no tronco da ameixeira de damasco que ficava por cima do terreiro, entre a porta da cozinha e o poço de lavar. Parecia mentira! Em alguns minutos apenas o meu avôlito fez-nos um balanço com uma corda muito grossa que foi buscar ao palheirinho.<br />Lembro-me de o ver a escolher bem o ramo adequado, não só o mais forte, mas também aquele que ficava no melhor lugar e tinha a altura ideal. Depois vi-o a tomar balanço, com o corpo inclinado para trás e em seguida para a frente e de repente a corda estava a voar sobre o ramo e no instante seguinte já estava cá em baixo. O meu avôlito amarrou-a bem, experimentou o peso, e disse que podíamos brincar no balanço.<br />O balanço ficava a meio do terreiro dos meus avôlitos. Uma de nós sentava-se, outra ia para trás e empurrava. Com mais força, mais, mais, até quase voarmos e tocarmos com uma ponta do pé num ramo da ameixeira branca. O cabelo voava. Sentíamos um frio na barriga. Era tão bom. - "Vamos se embalançar?" Não precisávamos de mais nada.<br />O balanço não se manteve ali por muito tempo, pelo menos na minha memória não foi muito longo o tempo desse balanço. Talvez estivesse a forçar demasiado o tronco da ameixeira, certo é que atrapalhava quem queria passar no terreiro. Durou pouco tempo esse balanço, mas foi o único que me ficou gravado na memória com esta nitidez.<br />Todos os nossos balanços foram semelhantes àquele, feitos com uma corda grossa atada ao tronco de uma árvore. Os balanços da minha mãe foram bem diferentes, pois nesse tempo eram as próprias crianças que os faziam, entrançando cascas de vime verde. Os balanços eram ainda mais preciosos para as crianças dessa geração porque só existiam em Junho, o mês dos balanços.<br />Em Fevereiro e Março era a altura de podar os vimes. Estes eram amarrados aos molhos e colocados de pé em poças de água junto às ribeiras, para rebentarem. Aos poucos, durante cerca de três meses, os vimes iam criando raízes e ficando com folhas. Depois de retirados da água, a base dos molhos era colocada sobre uma pedra e malhada com o malho. Era por aí, pela parte da casca que tinha ficado meio desfeito, que se começava a descascar o vime branco.<br />As crianças rodeavam os adultos eufóricas e iam recolhendo as cascas para os balanços. Basicamente faziam uma trança, com vários molhinhos de vimes, tendo o cuidado de ir acrescentando mais vime ao longo da trança, gradualmente para ficar bem seguro. Depois elas próprias procuravam um ramo e atiravam a trança ligando cuidadosamente as duas pontas, com outras cascas de vime.<br />Se eu só me lembro do balanço do terreiro dos meus avôlitos, já a memória admirável da minha mãe conseguiu guardar todos os balanços da sua infância. Um balanço que a Ti Filomena deixou fazer num ramo de nespereira que se estendia por cima da vereda que ia para as Eiras; um balanço no ramo do carvalheiro que ficava em cima do bardo e se estendia sobre o caminho ao pé da casa da Tia Carolina do Pinheirinho; um balanço na pereira que existia em casa do Ti Noé; um balanço na nespereira que havia à frente das casas da Turquia; um balanço em casa do Ti José Mirando, que acabou por ser mudado para outro local, abaixo do ribeiro.<br />- "Traz-me uma cartinha!" Era assim que as crianças pediam a quem se embalançava que tentasse agarrar, com as mãos ou com os pés, pequenas folhas de árvore, para provar o quão alto tinham conseguido ir.<br />Junho era o mês dos balanços, o mês em que se descascavam os vimes verdes. Quando os balanços começavam a secar, ainda tentavam salvá-los, metendo-os em água para amolecerem, mas mais tarde ou mais cedo acabavam-se os balanços. Até ao ano seguinte, na época dos vimes.<br />Ouço estas memórias e sinto beleza em tudo. Nos objectos, nos gestos, nas emoções e nas palavras. Fico contente por sempre ter usado a palavra balanço. A palavra baloiço foi uma novidade aprendida muito mais tarde e nunca me soou tão bem.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-21121783734740549412012-01-10T15:36:00.003+00:002012-01-13T01:02:49.012+00:00ter um pai nosso nas coisasPercorremos a casa com solenidade, guardando o silêncio a que parecem convidar-nos alguns espaços importantes. Admiramos a decoração, a limpeza extrema, o bom gosto.<br />Os donos da casa não disfarçam o orgulho. Aqui e ali comentam pormenores sobre a construção, sobre decisões que tomaram, escolhas difíceis, procuras complicadas ou até opções inicialmente erradas.<br />Reparamos nos tapassóis de madeira com dobradiças de ferro, admiramos o alpendre, experimentamos os sofás da sala. A dona da casa abre armários, explica a origem de alguns objectos, mostra o jogo de panelas, retira copos do aparador, abre panos e toalhas bordadas para melhor os admirarmos, chama a atenção para a poupança de espaço na cozinha.<br />Depois da agradável visita, a minha mãe vira-se para mim e exclama: "Ela tem um pai nosso nas coisas!" Foi esta a sua maneira de dizer que as coisas estavam todas extremamente organizadas, incrivelmente limpas, sem merecerem o mínimo reparo. Ter um pai nosso nas coisas é isto, é uma capacidade que algumas pessoas possuem e outras nunca conseguem alcançar, ainda que sejam católicas fervorosas e rezem o pai-nosso diariamente.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-83360048997953464972012-01-07T18:10:00.003+00:002012-01-11T00:54:02.295+00:00nem fome nem frio"Até à Festa não há fome nem frio!"<br />Respondem, com esta expressão, a uma queixa minha de que está muito frio, como ainda não tinha estado este Inverno. Já não é possível andar com roupas leves.<br />"Até à Festa não há fome nem frio!"<br />Explicam-me que o rigor do Inverno só começa realmente em Janeiro, altura em que chega a maior força do frio, e altura a partir da qual escasseiam os produtos da terra, frutos ou legumes.<br />Está mais frio do que antes, o ditado confirma-se.<br />Está frio mas não chove, como deve acontecer no Inverno. No meio de tantas anormalidades, até a chuva anda distraída e não vem no tempo certo.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-83383448663502582412012-01-03T00:04:00.057+00:002012-01-11T00:45:04.602+00:00história da bicha feraOs pequenos eram espertos e em vez de meterem o dedo na fechadura da caixa, metiam um rabo de lagartixa e conseguiam enganar a bruxa. Esta era a nossa parte preferida de uma das histórias que mais vezes ouvimos durante a infância, a história da Bicha Fera.<br />A cena do rabinho de lagartixa representava uma espécie de pausa ao meio da história, era a parte em que podíamos descontrair, a parte em que sorríamos e respirávamos fundo, pois todo o resto era assustador.<br />Sempre que a minha mãe contava a história da Bicha Fera, eu tinha esperança que ela dissesse que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta. Mas a minha mãe contava sempre a história tal como ela era, era assim mesmo nesse tempo.<br />Os dois pequenos protagonistas desta história comportavam-se mal. Por isso, a madrasta pediu ao pai deles que os abandonasse na floresta. O pai levou-os para a floresta com o pretexto de irem à lenha e quando lá chegaram sugeriu que eles fossem para um lado e ele para o outro, reunindo-se depois no ponto e partida.<br />Já carregados com dois molhinhos de lenha, os dois pequenos voltaram ao local combinado mas não viram o pai de ponta nenhuma. Esperaram mas ele não chegou. Então, começaram a chamar: "Traz, traz, quanta lenha meu pai faz! Truz, truz, quanta lenha meu pai fez!" Nesta parte, a minha mãe chamava várias vezes, imitando o eco da floresta.<br />A certa altura, eles lembraram-se de que tinham comido tremoços pelo caminho e decidiram seguir as cascas. Mas a certa altura já não havia mais cascas para seguir e eles continuavam perdidos e estava já a anoitecer. Foram andando, andando, andando, até que avistaram uma luzinha no escuro.<br />Andaram até chegarem junto a uma pequena casa, onde uma velha estava a fazer malassadas. A velha colocava as malassadas no parapeito da janela e os pequenos, esfomeados, iam-nas tirando sem que ela se apercebesse. A velha tinha um gato cego de um olho e pensando que o roubo era obra sua, ia dizendo: " Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro. Sape gato de olho torto, cego-te um e tiro-te o outro."<br />Até que decidiu ir à rua e encontrou os dois pequenos, que tratou muito bem e convidou para entrarem. Meteu-os na caixa do pão, uma caixa igual à que havia na cozinha dos meus avós e em todas as outras cozinhas de antigamente.<br />A velha ia alimentando as duas crianças pelo buraco da fechadura da caixa e de vez em quando queria saber se eles já estavam gordinhos. Mas os pequenos eram espertos e quando ela lhes pedia para meterem o dedo pela buraco da fechadura, eles metiam um rabinho de lagartixa que tinham na algibeira.<br />Era aqui que nós ríamos. Parávamos. Respirávamos. Que engraçado! Que bom eles terem levado a lagartixa na algibeira! Bem feito para a velha.<br />A velha começou a desconfiar por eles estarem sempre magrinhos, apesar de toda a comida que lhes dava e um dia decidiu abrir a caixa. Qual não foi o espanto quando os viu tão gordinhos! Então, disse aos pequenos para irem à lenha e deu-lhes um pão, uma garrafa de vinho e peixe, dizendo: "Vocês comem o pão e trazem o pão, comem o peixe e trazem o peixe, bebem o vinho e trazem o vinho."<br />Pelo caminho, os dois irmãos começaram a chorar por não saberem o que fazer em relação às coisas que tinham de comer e trazer ao mesmo tempo. Apareceu-lhes então Santo Antoninho, que era o padrinho de um deles, e recomendou-lhes que comessem o miolo do pão e levassem de volta a côdea, que comessem o peixe e levassem de volta as espinhas e que bebessem o vinho e levassem de volta a garrafa cheia de água. Disse-lhes ainda para não obedecerem à velha quando ela lhes dissesse para irem para a frente do forno bailar, que antes lhe pedissem para os ensinar. Os pequenos ficaram mais sossegados e pararam de chorar.<br />A velha ficou satisfeita com a solução encontrada pelos pequenos para as coisas que lhes tinha dado para levar e trazer e começou a aquecer o forno. Quando já estava quente, disse-lhe que fossem para a frente da porta do forno bailarem para se aquecerem, coitados, tinham vindo da serra e estavam gelados. Mas eles disseram-lhe que fosse ela primeiro para os ensinar como fazer, e assim que a mulher começou a bailar ao pé da porta do forno, pegaram na pá e empurraram-na para dentro do forno.<br />A mulher começou a arder e a gritar e saiu-lhe um cachorro pela boca que fugiu pela porta fora porque, afinal, ela era uma bruxa. Acabava assim a história da bicha fera, uma das histórias que mais vezes ouvi durante a infância e que nunca me tinha lembrado de contar à minha filha. Contei-lha um dia destes, fazendo pausas aqui e ali para me tentar lembrar - algumas partes tive de confirmar depois com a minha mãe.<br />Divertimo-nos a comparar a história de Hansel e Gretel dos livros infantis com esta versão madeirense e fizemos uma pausa para sorrir na parte em que o rabo de lagartixa metido pelo buraco da fechadura da caixa serve para aldrabar a velha. Estive tentada a começar dizendo que os dois pequenos se tinham perdido acidentalmente na floresta, mas acabei por fazer como a minha mãe fazia e contar a história tal como ela é.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-87031023101201826622011-12-15T23:26:00.002+00:002012-01-05T00:38:21.889+00:00tempo da cabra afanada<div></div>O pior tempo, porém, o pior tempo de todos, era o tempo "da cabra afanada".<br />- "Lembro-me de minha mãe apontar para baixo da Ribeira das Cales, em direcção à cidade", conta minha mãe, que só depois da nossa conversa anterior sobre particularidades meteorológicas, se lembra deste pormenor.<br />-"Não sei bem como era que eles diziam...Parecia-me tempo da cabra afanada."<br />Tempo muito rigoroso era esse tempo de sudoeste, com muita chuva, vento e nevoeiro.<br />"- Era um desabrigo!"Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-56065145839241327002011-12-04T23:30:00.008+00:002011-12-04T23:41:20.128+00:00Tempo de cima, tempo de baixo...O tempo está de cima. O tempo está da serra. O tempo está do norte.<br />É por isso que está mais frio, mas chove muito pouco, apenas alguns chuviscos de vez em quando, e não há nevoeiro.<br />- "E verdade que está frio, mas este tempo é menos aborrecido do que o tempo de baixo", explica minha mãe.<br />Meu pai descreve o tempo de baixo: - "É um nevoeiro terrível, não se vê nada, e com muita chuva." Tempo de baixo. Tempo do Sul. Tempo do mar.<br />O Tempo da Ribeira das Cales também é muito aborrecido. A minha mãe recorda-se que a minha avó detestava esse tempo:"É muito desabrigado!" Esse tempo de oeste traz também um nevoeiro desgraçado e chuva forte.<br />O tempo de Machico é mais ou menos. O meu pai encolhe os ombros: "Não é muito mau. É parecido com o tempo de cima."<br />Em breves minutos estão descritos os tempos.<br />Hoje o tempo está de cima, da serra. Está frio, mas não chove nem há nevoeiro.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-61648166157801771512011-12-01T09:28:00.005+00:002011-12-01T21:20:44.315+00:00ainda vai ter NatalAcontece, por vezes, demorarmos a estrear um peça de roupa, um utensílio de cozinha, ou outro objecto qualquer. Há coisas que ficam esquecidas sem percebermos bem porquê. Há peças que ficam à espera da ocasião ideal para serem usadas e quando nos damos de conta já passou muito tempo, afinal.<br />Pego numa dessas peças e espanto-me por a ter deixado de lado, esquecida. Já não me lembrava!<br />- "Ainda vai ter Natal", afirma prontamente a minha mãe.<br />Não conhecia a expressão "ter Natal" como sinónimo de "ser estreado".<br />A todos os outros, muitos, significados de Natal, junto-lhe este. Contente.<br />Os tempos são de crise mas o Natal expande-se em sentidos e significados.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-14160223575980428132011-11-30T20:28:00.009+00:002011-11-30T20:44:43.046+00:00enxógalharFalta pouco para a Festa e pedem-me a receita do licor de maracujá. Confirmo as medidas com a minha mãe. Primeiro deita-se a polpa de cinquenta maracujás num litro de álcool. Quinze dias depois, faz-se uma calda com um litro e meio de água e dois quilos de açúcar e leva-se ao lume durante alguns minutos. Deixa-se arrefecer e junta-se o álcool onde os maracujás estiveram em infusão. Há quem opte por coar e há quem prefira deixar algumas sementes de maracujá no licor. Só falta um pormenor importante: "- Durante o tempo em que a polpa de maracujá fica no álcool, é preciso enxógalhar a garrafa todos os dias."<br />Enxógalhar é um pormenor que pode fazer toda a diferença. A palavra enxógalhar é de tal forma habitual que só por acaso me ocorreu tratar-se de uma palavra que não existe no dicionário. O dicionário diz que a palavra correcta é agitar, eu digo enxógalhar. Digo enxógalhar porque todos me perceberão melhor e também porque esta é uma daquelas palavras que têm o sabor, o cheiro e as cores da infância. A palavra enxógalhar pertence às pessoas simples que talvez saibam mais do que as pessoas que sabem coisas muito complicadas.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-71972009607576201982011-11-22T21:27:00.000+00:002011-11-23T00:08:18.745+00:00ficar com as calças na mão- Fiquei com as calças na mão!<br />A primeira vez em que ouvi esta expressão era ainda criança.Talvez tivesse sido o meu pai, talvez o meu tio, talvez o meu avô. Um deles usou esta expressão numa conversa de pessoas grandes e suscitou a minha curiosidade<br />- Fiquei com as calças na mão!<br />Na altura em que ouvi esta expressão pela primeira vez, eu não sabia ainda nada sobre metáforas. As palavras tinham o sentido literal, apenas esse e mais nenhum. Foi por isso que eu imaginei o quadro, muito provável na época, de alguém que ia fazer as suas necessidades no meio de um pinhal, ou atrás das canas de uma fazenda, ou num poio mais afastado do caminho, e era surpreendido por outra pessoa que por ali andava, antes de ter tempo de voltar a compor-se.<br />- Fiquei com as calças na mão!<br />Era mesmo isso que acontecia por vezes. As pessoas trabalhavam no campo, faziam longos percursos a pé, e quando precisavam utilizavam um destes lugares, supostamente mais escondidos. Ora, como eram muitos os que procuravam lugares mais escondidos para o mesmo fim, nada mais normal do que muitos serem literalmente apanhados "com as calças na mão".<br />- Fiquei com as calças na mão!<br />Por ser uma possibilidade tão real e possível, e deveras embaraçosa, é que as pessoas a transformaram numa bela metáfora. Uma pessoa fica com as calças na mão quando é apanhada desprevenida, totalmente desprevenida. Quando é apanhada desprevenida e fica sem saber o que fazer, porque já foi apanhada de qualquer maneira.<br />São poucos os que não estão com as calças na mão!Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-2291537029484731552011-10-27T20:27:00.004+01:002011-10-28T00:10:03.717+01:00a discrição do padre<div></div>Talvez nos tenhamos cruzado na Rua dos Netos, no tempo em que a Rua dos Netos era a rua da rádio, a minha rua de todos os dias de trabalho. Talvez nos tenhamos cruzado mas a verdade é que não me lembro da figura de um padre que alguns recordam até hoje por causa da história que eu vou contar.<br />Contaram-me a história que eu vou contar a propósito de uma conversa que surgiu como as cerejas a partir de outra história que também aqui hei-de contar e que surgiu como as cerejas, a propósito de um simples um copo de vinho.<br />Pois bem.<br />Havia um padre que passava muito na Rua dos Netos. Entrava sozinho no bar do senhor José, e pedia dois cálices de aguardente. Vendo-o sozinho, perguntavam-lhe: para quem é o segundo? Ele respondia que era para um colega, que vinha atrás, mesmo atrás, já devia estar quase a entrar.<br />O padre bebia de um único gole o seu cálice de aguardente. Depois dirigia-se até à porta, como quem procurasse o suposto colega, olhava para um lado, olhava para o outro e voltava para junto do balcão. Com um encolher de ombros, bebia o segundo cálice, enquanto explicava, fingindo surpresa, que o colega, afinal, não apareceu.<br />Ora bem.<br />Segundo a interpretação do colega que me contou esta história, guardada carinhosamente por entre as memórias do tempo em que a Rua dos Netos era a nossa Rua por ser a rua da rádio, o Padre com quem talvez eu também me tenha cruzado mas não me lembro, era um padre discreto. Não queria dar nas vistas, não queria parecer demasiado ávido por bebida, não queria ser criticado. O padre que bebia dois cálices de aguardente no bar do senhor José queria tanto passar despercebido que acabou ficando na história.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-91114758221245176832011-10-10T17:12:00.009+01:002011-10-10T17:31:04.508+01:00uma frigideira mascarrando uma panelaSituações do dia-a-dia conduzem-me muitas vezes à recordação desta expressão, que na minha juventude ouvia da boca das pessoas mais velhas.<br />Esta expressão era utilizada com propriedade nos momentos em que alguém criticava outra pessoa, sem se aperceber que cometia os mesmos erros, aqueles que apontava, talvez até mais alguns, e quem sabe bem mais graves.<br />Antigamente tanto as panelas como as frigideiras andavam sempre mascarradas porque eram colocadas directamente sobre as pedras do lar, apanhando com o fogo da lenha praticamente em toda a superfície. Ora, uma frigideira tem menos superfície para mascarrar do que uma panela.<br />A expressão faz sentido e tem piada. O que eu gostava era que não se tivesse banalizado tanto o contexto em que encaixa como uma luva.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-64462538394591407232011-10-07T23:43:00.001+01:002011-10-07T00:55:09.372+01:00cravos e rosasO meu amor é um cravo<br />Foi o qu'o craveiro deu<br />Toda a gente tem inveja<br />Daquele cravo ser meu<br /><br />Eu sou cravo, tu és rosa<br />Qual de nós se estima mais<br />Os cravos andam pelas janelas<br />E as rosas pelos quintais<br /><br />Rosa que 'tás na roseira<br />deixa-te 'tar fechadinha<br />qu'eu vou lá fora e venho<br />Rosa tu vais <span style="font-style: italic;">seres</span> minha<br /><br />Não quero amor alto<br />Que não me caiba na porta<br />Quero um amor rasteirinho<br />Com'um craveiro na horta<br /><br />Menina por ser bonita<br />não julgue que mais merece<br />quanto mais bonita é a rosa<br />mais depressa desvanece<br /><br />Minha avó chama-se rosa<br />minha mãe Rosa Maria<br />Eu também me chamo Rosa<br />Minha mãe c'a rosaria<br /><br />Daqui até à minha terra<br />é tudo caminho chão<br />é tudo cravos e rosas<br />plantados por minha mão<br /><br />Muitas quadras populares, como estas que recolhi no Sítio da Ribeira dos Pretetes (Caniço) em 1986, mencionam estas duas flores tão comuns: cravos e rosas.<br />Normalmente, o povo utiliza a imagem do cravo para se referir aos rapazes e a da rosa para se referir às raparigas. Cravos e rosas nos jardins. Rapazes e raparigas nas eiras, nos adros das igrejas, nos bailaricos, nos afazeres diários, à distância exigida pelas convenções da época, mas nunca separados.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-83773611202486063672011-10-06T00:37:00.006+01:002011-10-06T01:08:03.563+01:00dívidas e pecados"Dívidas e pecados cada um paga por si."<br />A minha mãe utilizou esta sábia expressão, numa conversa simples que tivemos hoje à tarde.<br />Vim embora e trouxe-a comigo, presa ao ouvido.<br />Penso: é bem verdade. As minhas dívidas e os meus pecados, mais ninguém paga senão eu.<br />Penso: que máxima interessante. Se cada um pagar pelas suas dívidas e pelos seus pecados, tudo está certo no mundo.<br />Mas depois penso no mundo. Depois penso no mundo em ponto pequeno onde vivo e trabalho. Depois percebo que já não e bem assim. Depois entristeço-me. Porque até as máximas mais universais começam a perder actualidade.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-62863398428173696162011-10-02T16:39:00.008+01:002011-10-03T00:41:03.836+01:00de arrancar castanheiros<div></div>Para além da massa cortada grada, a sopa tinha de tudo e mais alguma coisa: nabo, semilha, batata, feijão, pimpinela, abóbora amarela, cebola, cenoura, vajinha, maçarocas, couve fechada, folhas de couve, inhame, e ainda abundantes bocados de carne de vaca com um pouco de gordura e talvez mais alguma coisa de que não me lembro.<br />O meu pai deixou a enxada a meio do poio, no local exacto onde cavara as últimas semilhas e onde deveria recomeçar a tarefa, sacudiu a terra das botas d'água, lavou as mãos no poço de lavar, entrou na cozinha, sentou-se à frente do prato fumegante, esfregou as mãos de contente e exclamou: - "Esta é de arrancar castanheiros."<br />Duas colheradas depois, voltou a gabar a sopa e a usar o dito dos castanheiros. Contive-me. Deixei passar mais um bocadinho, mas algumas colheradas depois lá estavam as minhas inevitáveis perguntas sobre a expressão "de arrancar castanheiros", às quais respondeu com bom humor. Graças a um prato de sopa à moda da minha mãe, fiquei a saber que os castanheiros são as árvores mais difíceis de arrancar. Por isso se diz dos pratos mais substanciais, daqueles que dão muita energia, que são "de arrancar castanheiros".Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-91985533802477432702011-09-27T13:14:00.004+01:002011-10-01T02:06:02.117+01:00um maranho<div>O movimento da loja justifica três funcionários na caixa, em simultâneo. Uma funcionária regista os produtos e informa sobre o preço, outra funcionária dobra as peças de roupa, e um terceiro funcionário passa-lhe o saco para as guardar.<br />Repetem gestos mecanicamente, enquanto conversam.<br />Retiro o cartão multibanco, espero que me passem a máquina, confirmo o preço, escrevo o código, escuto a conversa.<br />- "É um maranho que nunca mais acaba!" resume o funcionário, encerrando o diálogo sobre o assunto do momento, o assunto de que todos falam e que a todos diz respeito: a dívida da Madeira. Um maranho!<br />O povo foi ao adjectivo emaranhado, que significa embaraçado, enredado, e decidiu encontrar-lhe um substantivo. E aqui está ele: um maranho. Tomara que não estivesse!<br /></div>Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-24214660183448106932011-08-18T22:44:00.000+01:002011-10-01T01:51:17.591+01:00bebé com cuspo na boca- "Vejam, a menina tem cuspo na boca!" E até esse pequeno pormenor suscita graças e mimos, e exclamações e conversas dirigidas à bebé naquelas estranhas vozes que os adultos não resistem a fazer na presença de crianças de colo.<br />Olho com atenção para a bebé e reparo que na verdade tem um pouco de espuma na boca minúscula, onde parece formar-se uma muito mais minúscula bola transparente, tipo bolinha de sabão.<br />Aquilo que não passa de um pequeno pormenor, motivo de distracção para nós, ganha outra dimensão com a chegada da avó. A avó aproxima-se e de repente tudo está explicado: " - Coitadinha, tem comichão!"<br />Comichão. A avó é a única pessoa a saber que a bebé sente comichão, por causa desse pormenor a que ninguém tinha dado importância. "- Quando os bebés têm cuspo na boca é porque sentem comichão."<br />Este é um dos muitos atributos das avós: desvendarem os mistérios do mundo.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-11120018975180635602011-07-09T14:29:00.001+01:002011-09-26T00:14:08.897+01:00pôr o soalho num prato- "Ela põe o soalho num prato!" A frase é dita com admiração e por isso as palavras saem mais lentamente do que o normal. Cada palavra tem um contorno, um peso; a frase parece mais erudita do que é realmente, graças à forma solene como são pronunciadas as palavras. Para que fique bem claro o elogio.<br />Um "soalho num prato" é um soalho impecavelmente limpo. Tão limpo que cintila e faz pena pisá-lo. "Está num prato", exclama a mulher, voltando a admirar o trabalho de outras mãos. Há mãos assim, especiais. Mãos que fazem brilhar as coisas em que tocam. Mãos que conseguem pôr qualquer soalho num prato.<br />Mais tarde, a explicação que procuro: "Então não vês que está tão limpo como o fundo de um prato, pronto a se deitar o comer dentro? Até está luzindo!"Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-63194127165026093432011-06-15T00:13:00.000+01:002011-07-27T15:59:57.179+01:00muito mal ouvisto"- Ele é muito mal ouvisto!"<br />A senhora Maria Isabel dizia estas palavras de repreensão como se fossem palavras de carinho. Afagou o cão que acabava de acusar de ser mal ensinado, e reafirmou: "Ele é muito mal ouvisto." Depois, ainda com a mão afagando a cabeça do animal, perguntou: "É, não é?"<br />O cão só queria brincadeira e voltava a colocar as patas da frente sobre o colo das visitas, indiferente ao facto de a dona o ter apelidado de "mal ouvisto".<br />A cena deliciou-me tanto com a expressão que não ouvia há muito tempo. Mal ouvisto.<br />Quem é que nunca foi mal ouvisto?<br />Lembro-me de a minha mãe se queixar de eu ser mal ouvista quando na dolescência me pedia para eu fazer alguma tarefa doméstica, exactamente na hora em que estava no auge o episódio do Sandokan ou do Tarzan, na televisão acabada de ser instalada em casa. Ou quando me custava sair da cama para percorrer quase hora de caminho nos piores dias de Inverno, até chegar à escola. E quando. Quando tanta coisa. Cenas semelhantes às que vim a viver com a minha filha, apenas com a diferença dos nomes dos programas e dos canais de televisão, e do computador no lugar dos livros.<br />Nada mais normal do que as crianças e os adolescentes serem mal ouvistos, não em exagero mas na medida certa.<br />E os adultos? Também. Acho que os adultos podem e, em alguns casos, até devem ser mal ouvistos. O mais difícil é conseguirem sê-lo com os motivos certos, nos momentos certos e na medida certa.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7909481.post-78130959158353653042011-05-23T10:20:00.005+01:002011-05-23T10:20:00.428+01:00Amigados<div></div><br />Na infância proibiram-me a palavra amigo. Uma palavra ondulante, bonita, que aprendera no livro da primeira classe, e que eu senti orgulho em usar pela primeira vez, quando anunciei que um amigo da escola ia lá a casa brincar connosco. Planeávamos fazer manteiga a partir do polén amarelo que saía da flor do pinheiro. Planeávamos procurar ninhos, planeávamos construir uma casa com ramos de acácia e muito mais.<br />A minha avó e a minha mãe disseram-nos que a palavra amigo não era uma palavra bonita. A pessoa que vinha brincar nessa tarde era, sim, um colega. A palavra colega não tinha problema nenhum e podíamos dizer as vezes que quiséssemos. Amigo, porém, era uma palavra proibida. Uma palavra má.<br />Matutei naquele episódio durante muito tempo sem chegar a qualquer conclusão. Apalavra era bonita, e ondulava quando se dizia, todas as palavras deviam ser assim, ondulantes. Então, porquê? Mas nesse tempo não se explicava nada às crianças. Era assim e acabou-se a conversa.<br />A memória desta proibição e a dor de ter sido privada de uma palavra tão bonita durante anos, tornou-se mais nítida quando, há poucos dias, ouvi uma conversa entre um casal de idosos. Conversavam e eu percebi que tentavam esclarecer quem era quem, não faço ideia a propósito de quê. Era uma daquelas conversas dos velhos - velhos também é uma palavra bonita - que, de repente, sentem necessidade de se localizarem num mapa. Lembram-se dos que já morreram, dos que enviuvaram, dos que embarcaram e voltaram, dos que nunca mais viram.<br />- Aquele que era amigado com a Filha de não sei quem, não sei de onde?<br />- Esse mesmo. Deixou a mulher e amigou-se com ela, quando arranjou aquele trabalhinho lá em cima.<br />Amigados. Eram amigados.<br />Lembro-me mais desta palavra, mas as pessoas também utilizavam amancebados como sinónimo de amigados. Os amigados eram aqueles que juntavam os trapinhos sem a bênção do casamento pela igreja. Eram casos tão raros que de imediato se tornavam no assunto do momento na freguesia inteira e até fora dela, e como pude comprovar, ainda hoje são óptimas formas de identificação de conhecidos e vizinhos de outros tempos.<br />Uma vez, ouvi numa conversa entre adultos: " O marido da Maria arranjou uma amiga para os lados do Funchal e agora nem sequer vem a casa." Foi talvez o primeiro caso do meu sítio. E presumo que seria ainda pior se fosse ao contrário: "A Maria arranjou um amigo".<br />Foi por isto que me roubaram uma palavra ondulante e bonita.<br />Mas. Aquilo que nos tiram, cresce sempre em nós com mais vigor. Hoje, a palavra amigo e a palavra amiga sãos dos maiores tesouros que carrego para todo o lado.Lília Matahttp://www.blogger.com/profile/10067090615519901219noreply@blogger.com3