sábado, julho 26, 2014

dar no porco

A minha mãe olha pela janela do carro, admirada com tantas obras: túneis, estradas, viadutos, edifícios que ela nunca tinha visto, que nem sequer fazia ideia que existiam. O passeio teve o dom de lhe causar uma admiração rara. Depois suspirou. Suspirou um instante antes de ditar a sentença: "- Mesmo tinha de dar no porco"!
Dar no porco. Como é possível que esta expressão popular me tenha passado ao lado durante tantos anos? Dar no porco é dar errado. Dar no porco é dar para o torto.
É verdade que hoje em dia está tudo ao contrário, pois ora agora! Só depois de de ter vivido tantas coisas que deram no porco, aprendo este dito popular.
Lembro-me e comento que na Alemanha o porco está associado à sorte. Cada terra com seu uso.
Este passeio que tanta admiração causou à minha mãe deve ter já cerca de um ano. Se fosse hoje, mais admirada ainda ficaria. Cada vez mais porcos bailam por aqui e por ali, na nossa linda terra.

quarta-feira, julho 16, 2014

o iró

Sempre que passávamos junto ao Poço do Ti João Duarte, fazíamos silêncio. Queríamos ir mais depressa mas andávamos devagar, quase pé ante pé. O meu pai e a minha mãe diziam: nunca venham para aqui, nem se cheguem ao pé do poço porque ele tem um iró. Nós olhámos para o poço e não víamos nada. Mas eles insistiam que ele vivia no fundo, no meio do lameiro, ao pé da bucha do poço. O meu pai estendia o braço esquerdo, e com o braço direito tentava fazer a medida do iró: "Tem pr'aí um metro de comprido." A parte mais assustadora era quando nos explicavam que caso caíssemos dentro do poço seríamos, sem dúvida, comidas pelo iró.
Guardámos imenso respeito ao poço, junto ao qual tínhamos obrigatoriamente de passar quando às vezes, ao domingo, íamos às Fontes visitar os meus avós paternos. Eu perguntava sempre se era verdade que tinha lá um iró e eles diziam que sim e o meu pai voltava a calcular a medida do bicho. Mas a verdade é que eu duvidava. Duvidava até que existisse neste mundo algum animal chamado iró.
Pensava comigo mesma que os meus pais tinham inventado a história do iró para evitar que nos aproximássemos demasiado do poço e caíssemos lá dentro. Havia muitos poços para guardar a água de rega, mas aquele era enorme, era o maior das redondezas, e fazia fronteira com o caminho estreito, o perigo era maior. O iró, para mim, era uma espécie de "velho da saca", a figura usada para obrigar as crianças a se comportarem bem, a comerem, a se lavarem, a irem dormir à hora certa. Secretamente, achava que os meus pais tinham sido inteligentes ao inventarem semelhante figura só para nos protegerem do perigo que o poço representava.
Há pouco tempo lembrei-me da história do iró, confrontei os meus pais e, para meu espanto, havia de facto um iró no fundo do poço do Ti João Duarte, no meio do lameiro, perto da bucha do poço, que parecia uma cobra e devia ter à volta de um metro de comprimento. O iró é, afinal, uma enguia, uma espécie que eu julgava que nem sequer existia na ilha.

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