quinta-feira, abril 30, 2009

dormir de meias

Durante todo o Outono, Inverno e inícios da Primavera, desafio uma antiga superstição, segundo a qual não se deve dormir de meias, porque "os mortos vão de meias".
Sempre ouvi dizer isso mas o frio é mais forte do que a crença e só consigo adormecer se tiver os pés quentes. Não tenho medo. Nem sequer quando me vem à memória a imagem do primeiro morto que vi na vida.
Lembro-me muito bem de a minha avó me ter levado pela mão por entre veredas, com o vestido de chita a roçar as ervas molhadas, até uma casa na Ribeira onde se chorava a morte.
Entrámos na sala e lá estava o senhor na écia, deitado, de mãos no peito, vestido com o seu melhor fato, de meias e sem sapatos. Eu não percebia o que estava a acontecer, nem sequer sabia que se morria, e fiquei muda de espanto, com aquela imagem dentro da cabeça.
Depois de uma eternidade, regressámos pela mesma vereda e eu vinha diferente. Não sabia o que fazer do imenso frio que sentia de repente, nem do estranho medo que tinha dentro de mim e me espantava a voz.
Não conseguia falar e tinha frio mas lembro-me de ter perguntado à minha avó porque é que não lhe tinham calçado os sapatos, ao menos deviam ter-lhe calçado também os sapatos.

quarta-feira, abril 29, 2009

um sininho

- "Não te preocupes que isto 'tá um sininho."
Olho para o carro que vão fazer o favor de me emprestar, graças a Deus que há um remedeio, e fico sem saber o que dizer. Está a cair de velho, tem várias tonalidades de cor, uma porta não abre, demora uma eternidade para pegar, e perante o meu ar de desconsolo, volto a ouvir: "Isto 'tá um sininho."
Vim a confirmar que a aparência vale muito pouco e que uma porta é mais do que suficiente. Na verdade, o carro está um sininho.
Um sininho é uma metáfora para algo que trabalha muito bem. "Um sininho ouve-se ao longe, não se ouve?" - explicam-me - "Trabalha bem, é afinado".

terça-feira, abril 28, 2009

a flor humana

Com as compras já metidas dentro dos sacos de supermercado e várias pessoas à espera na fila, a velhinha mexe e remexe na carteira. Abre todas as divisões da carteira que deve ter muitos e muitos anos, é um modelo antigo. Depois abre o porta-moedas da mesma idade e fica confusa. Tinha o dinheiro ali mesmo e já não sabe onde o pôs. Pede ajuda à neta. Olham para o chão, remexem nos bolsos do casaco antigo. Não sei onde nem como, devo ter-me distraído por uns segundos, o dinheiro aparece e a velhinha, rindo com os seus poucos dentes, exclama: "É como a flor humana! Aparece e desaparece."
A flor humana acompanhou o meu imaginário infantil, sobretudo devido a uma cantiga que a minha mãe nos cantava:

Palhacinha sai à rua, Palhacinha sai à rua
P'ra comer banana
Para apenas um escudo, paga apenas um escudo
P'ra ver a flor humana.

Era com esta cantiga que nos arraiais madeirenses um homem vestido de palhaço, sobre um pequeno palco e ao som de música gravada, atraía as pessoas à tenda onde se encontrava esse fenómeno de espantar que era a Flor Humana. A minha mãe nunca viu com os seus próprios olhos, só sabe do que ouvia contar. Mas o meu pai pagou um escudo e viu-a.
"Aparecia a cabeça dela saindo de dentro de uma jarra e depois desaparecia para baixo. Era o pai que dizia à filha para aparecer e depois cumprimentar as pessoas e ela tirava o chapéu para cumprimentar."
Aquilo dava que falar. Havia muitas teimas porque as pessoas tentavam compreender como é que aquilo era feito. Uns desconfiavam, outros acreditavam, nunca se chegava a um consenso e é assim que se alimentam os assuntos que mais duram.
A minha avolita pertencia ao grupo das pessoas que não acreditavam naquela magia. "Ela achava que aquilo não era espanto nenhum porque havia uma espécie de caixa que parecia o cubo de um moinho, onde ela achava que cabia a mulher escondida." Ninguém sabe se a minha avó tinha razão ou não.
O certo é que a Flor Humana fez parte de uma época, atraindo pessoas em todos os arraiais madeirenses. E também é certo que nunca foi esquecida. Quando algo aparece e desaparece, como o dinheiro da velhinha na caixa do supermercado, ou outro coisa qualquer, diz-se que é como a flor humana.

segunda-feira, abril 27, 2009

alturas em que não se deve casar

Antigamente as pessoas tinham muito cuidado na escolha do dia do casamento. Não se casavam em Agosto porque "é o mês do desgosto" e também não se casavam em Maio porque "quem casa em Maio, não passa nove Maios."
Quanto aos dias da semana, à sexta-feira nem pensar porque "é o dia das feiticeiras", um dia que dá azar. Ao sábado, também não porque "o sábado não tem cabeça nem rabo". A quarta-feira, ao meio da semana, era igualmente um dia interdito a casamentos.
E durante a quaresma, época de tristeza, é claro que também ninguém devia casar.
Enfim, restavam os outros dias e as outras épocas do ano, que chegavam e sobravam.

domingo, abril 26, 2009

Fado antigo

O diacho do melro preto
Onde foi fazer o ninho
na copa do chapéu
do Senhor Santo Antoninho

Refrão:
Ah fado que foste fado
Ah fado que já não és
Ah fado que já virastes
A cabeça para os pés

Rapazes quando eu morrer
Ponham-me a guitarra ao lado
P'ra quando eu chegar ao céu
Tocar e cantar o fado

O meu amor não é aquele
O meu amor tem chapéu
O meu amor anda direitinho
Como uma estrela no céu

O sol já mudou de rumo
Já não nasce onde nascia
Também já mudou de amor
Quem de amor por ti morria

Menina por ser bonita
Não julgue que mais merece
Quando mais linda é a rosa
mais depressa desvanece

Letra de um fado antigo, cantado com acompanhamento de guitarra, recolhida no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço, a 23 de Janeiro de 1986

sábado, abril 25, 2009

uma peça de roupa do avesso

Usar uma peça de roupa do avesso é um dos métodos que a sabedoria popular aconselha para evitar que nos dêem olhado.
Há pessoas mais treitas a olhado e inveja do que outras. Nesse caso, para além da peça de roupa usada do avesso, devem andar sempre com uma cruzinha de alecrim.
Uma terceira medida, já que nunca é demais prevenir, consiste em andar com o dedo polegar atravessado entre o indicador e o médio, com a mão em forma de soco.
Vou experimentar as três receitas juntas. Talvez o mau olhado explique algumas coisas sem explicação.

sexta-feira, abril 24, 2009

para afastar as feiticeiras

Qualquer barulho estranho, qualquer remexer, e logo surgia o receio de que fosse uma feiticeira.
Havia duas fórmulas que as pessoas logo diziam, para a afastar.

1. "Hoje é sábado, sábado é, em nossa casa Jesus, Maria, José. Tosca, marrosca."

2. Credo cruzes, credo cruzes, credo cruzes, radabás, satanás."

Uma destas fórmulas bastava para afastar a suposta feiticeira. Bons tempos, em que tão facilmente se afugentava o mal.

quarta-feira, abril 22, 2009

apatanhar

Os madeirenses usam este verbo tão frequentemente que quase não nos apercebemos tratar-se de um regionalismo. "Apatanhar" é pôr os pés sobre alguma coisa, esmagar, passar ou andar por cima de algo. O nosso "apatanhar" é o mesmo que o "pisar" usado no restante território nacional e que na linguagem popular madeirense tem outro significado.
Ouvi há pouco este verbo em pleno uso, reparei nele, e aqui está ele, no lugar da memória.

terça-feira, abril 21, 2009

relatar

Por entre o movimento, as vozes e as cores da Fernão de Ornelas, a minha atenção captou e isolou a palavra "relatar", utilizada numa conversa de duas mulheres paradas no passeio, perto da montra de uma sapataria.
A palavra "relatar" suscitou-me a curiosidade por ter sido usada ainda no sentido que lhe conheci em pequena, como sinónimo de bilhardar, criticar, falar da vida alheia.
Embora o hábito de "relatar na vida dos outros" continue bem arreigado, há muito tempo que não ouvia o verbo "relatar" com este sentido que lhe foi conferido pelo povo; pensava que já nem se usasse. Usa-se, afinal. Continuei o meu caminho mais contente do que vinha e com a sensação de ter ganho o dia. A riqueza das palavras - gosto tanto de palavras - constrói-se desta multiplicidade de sentidos.

segunda-feira, abril 20, 2009

ensinar o caminho ao diabo

"Andar de cú para trás" era uma brincadeira inevitável, entre as muitas brincadeiras das crianças que nada tinham para brincar. Tentavam a proeza no terreiro, nas eiras, nos caboucos e em qualquer outro local onde houvesse um chãozinho. Tentavam fazer um qualquer percurso na perfeição, sem esbarrar em nada, sem se desviar do trajecto, sem tropeçar, sem cair.
Mas logo um adulto as avisava: "Quem anda de cú para trás, ensina o caminho ao diabo." A ameaça parecia amedrontar os mais pequenos, embora ficassem confusos com essa coisa do diabo, e outra brincadeira vinha de imediato susbtituir a aventura de andar ao contrário.
Mas a memória é coisa de velhos e no dia seguinte as crianças já percorriam novamente o terreiro "de cú para trás".
Não tenho explicação para esta crença popular. Talvez a ameaça do antigo ditado fosse apenas uma forma de dissuadir os pequenos de um hábito que podia resultar em mais uma de inúmeras quedas, com joelhos e pernas esfolados e golpes na cabeça, que tinham de se curar sozinhos.

sexta-feira, abril 17, 2009

Tristeza por alegria

Vai-te embora, Manuel
passa a serra com de dia
Vai ver se encontras quem troque
Tristeza por alegria

Quadra recolhida no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço, cantada normalmente durante a apanha do trigo.

terça-feira, abril 14, 2009

vai ser gabado

"-Olha, vai ser gabado!"
Uma pequena aranha, quase transparente, dita assim a sorte do bordado, ainda emaranhado no colo e com muito por acabar.
Uma aranhinha é sinal de boa sorte, seja no bordado, numa peça de roupa, ou noutro objecto qualquer. Indica que vai agradar e por isso mesmo será gabado.
A aranha minúscula, inofensiva, quase transparente, deixa logo contente a dona do bordado, que sorri, fingindo não acreditar. Mas acredita. Em tudo, desde o olhar aos gestos que comandam a agulha e a linha, mostra uma súbita e desconhecida confiança.

quarta-feira, abril 08, 2009

Um Pechête

Depois de alguns preâmbulos, surgiu o pedido, humilde: -"Será que podes me dar um pechête até lá abaixo, ao Caniço?"
Um pechête? Claro que sim.
Dei a desejada boleia até ao centro de saúde e pelo caminho ouvi falar das nuvens que pairavam sobre as Desertas e do tempo que anunciavam, do remédio das semilhas que ia ser comprado depois da consulta e que tinha de ser deitado o mais rapidamente possível, do porco que parece não andar muito bem, e ainda de outras afazeres e preocupações de quem trabalha a terra.
Recebi, no final, um Obrigado redondo, claro, humilde; um Até outro dia, se Deus quiser; e um Sorriso.

domingo, abril 05, 2009

Esquinar

Aprendi um verbo novo, que surgiu de mansinho numa das fantásticas narrativas da minha mãe.
Recordávamos passatempos antigos e a minha mãe lembrou-se de um boneco preto que costumava estar no adro da igreja da Camacha, à saída das missas de domingo.
- "Era um boneco que faiscava luz nos olhos e na boca. As pessoas metiam uma moeda de cinco tostões, ou de um escudo, já não me lembro bem, e ele deitava pela boca um papelinho com o signo da pessoa..."
Mas as histórias têm sempre mais qualquer coisa, se não tivessem não seriam histórias. Ora, num desses domingos à saída da missa do dia, estava uma rapariga fascinada com aquele boneco, apreciando o passo dele, a forma como funcionava, e teimava em ali ficar mais um bocado. A mãe dela aborreceu-se e disse: "Olha, eu cá vou-me embora. Fica aí esquinando com o preto."
Inexplicavelmente, este pequeno episódio revelou-se digno de ocupar espaço na memória de quem o presenciou e nunca foi esquecido.
A minha curiosidade agarrou-se ao verbo "esquinar" e quis saber o que significava. Foi assim que aprendi um sinónimo de namorar. Esquinar é outra forma de dizer namorar. E se pensarmos na forma como se namorava antigamente, tem toda a lógica. Os casais namoravam, olhando-se disfarçadamente, tentando passar despercebidos aos outros. Olhavam de lado e disfarçavam. Faziam sinais, a distância certa aumentava o desejo do outro. Era um interessante jogo de olhares e sinais, uma arte de dizer e ocultar.
Naquele tempo, os rapazes e as raparigas "esquinavam". Trocavam olhares com promessas e juras, olhares disfarçados que diziam tudo o que era preciso dizer, nem mais nem menos. Era bonito.

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