quarta-feira, março 19, 2008

Entramelado

"- Este senhor costumava estar aqui cheio de vida e agora já está todo entramelado, como eu também estou." A conversa foi feita por uma fiel cliente do "Sino", uma das lojas mais emblemáticas do Funchal, agora também com os dias contados, que tristeza. Ora, a senhora queria com esta afirmação mostrar de uma forma bem clara, ilustrada com uma imagem que não deixasse margem para qualquer dúvida, que sempre fora cliente da loja, desde que se entende, desde que era uma pequena nova e cheia de vida, tal como o senhor da loja. E a prova de que foi cliente durante muitos anos, muitos, é que já estão os dois entramelados. Já não se mexem bem, já sentem o peso da idade, com as limitações físicas normais. Uma perna que se arrasta, um braço que dói, as cadeiras que não deixam uma pessoas se agachar e se levantar e sei lá mais o quê, todos nós acabamos mais ou menos entramelados, mais tarde ou mais cedo.
O "Sino" vai desaparecer da Rua Fernão de Ornelas, aos poucos vão desaparecendo as lojas que guardei na memória do tempo em que crescia e ia à cidade duas ou três vezes por ano, de olhos esbugalhados para as montras e para as ruas e para as casas e para as pessoas. Mas as lojas também ficam entrameladas, como as pessoas, e nem belo dia de Primavera, apesar de alguns jacarandás já estarem em flor, fecham as portas para sempre e entristecem as pessoas que se ralam com estas coisas e que também gostam de jacarandás, por mero acaso porque uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Eu não sei se a senhora que começou a ir ao "Sino" no século passado, quando ainda era uma menina, também gosta de jacarandás, da palavra redonda e aberta, lilás - quando se diz jacarandá há uma magia que se desdobra no ar, misteriora, quando se diz jacarandá juro que acontece alguma coisa de inexplicável - não sei. Sei que sente antecipadamente a imensa, inexplicácel perda. E sei que ainda utiliza o adjectivo "entramelado/a".
Fecham-se portas, caem cortinas sobre palcos da vida de todos os dias, encerram-se capitulos da história dos lugares como se nada fosse, que tristeza. E. Ali, no meio dos escombros das memórias das histórias da cidade no meio das coisas que vão deixar saudades ora se vão, então não vão, áme não, eis que a senhora Maria - é muito provável que se chame Maria e se não se chamar é como se se chamasse, digo eu - utiliza a palavra "entramelado".
Obrigada.

sexta-feira, março 07, 2008

Despique

Rapaz:
-Tendes os pezinhos brancos
Branquinhos e cor-de-rosa
Porque não usas tamancos
Cobrindo a carne mimosa?

Rapariga:
-No Campo não se repara
Fui assim habituada
Como posso andar calçada
Custando a vida tão cara?

Rapaz:
- Se tu quisesses, Maria
Receber-me por namoro
Podias calçar um dia
Sapatos com pregos de ouro

Rapariga:
-Aceito para estrear
Vá que seja, vá que seja
Quando nos formos casar
Pela santa madre igreja

Rapaz:
- Casar, Maria, isso não
Quem te fala em casamento?
Pode haver muita afeição
mas não haver sacramento

Rapariga:
-Não sou dessa qualidade
Eu ando de pé descalço
Não darei um passo em falso
Como as fofas da cidade

Rapaz:
- Meu Deus, que cara tão feia
Eu não queria dizer isso
As raparigas da aldeia
Parecem mesmo uns ouriços

Rapariga:
- A gente vive nos campos
Só namora quem se estima
Adeus e adeus sapatos
Assenhora a sua prima


Recolhi este despique em 1986 e soube então que foi trazido para o Sítio por uma mulher que trabalhou no Funchal, no Hospício, onde terá aprendido muitas cantigas com as freiras.
Primeiro, o depique terá sido ensaiado de propósito para ser cantado no bazar, durante as festas mais conhecidas da freguesia, como forma de atrair público. Era cantado por duas crianças, um rapaz e uma rapariga, vestidos de vilões. As pessoas gostaram, a música ficou no ouvido, e o despique passou a ser cantado em muitas outras ocasiões, sobrevivendo na memória até aos dias de hoje.

quarta-feira, março 05, 2008

Um ar encanado

"- Está aqui um ar encanado!" Era verdade. Estava um ar encanado, graças a uma porta aberta quase em frente de uma janela também aberta.
Detestei o ar encanado, não o consigo suportar, mas gostei de ouvir esta antiga forma de falar sobre uma corrente de ar.
Era assim que se dizia antes, no tempo em que as pessoas tinham respeito ao ar encanado e o evitavam porque sabiam o quanto podia ser prejudicial. Os mais velhos alertavam: Cuidado com o ar encanado. Fecha a porta. Agasalha-te. Foge desse ar encanado.
Ar encanado porque parece que o ar vai dentro de um cano, todo numa mesma direcção, numa corrente, encaminhado para a outra abertura. Há expressões bem mais difíceis de explicar.
Nos últimos dias tive de me sujeitar a ares encanados por mais do que uma vez. Talvez seja por isso que hoje não me sinto muito bem, sinto um frio estranho.

domingo, março 02, 2008

Já tenho as marcas, falta o travesseiro

"- Já tenho as marcas. Só falta o travesseiro." Usei a antiga expressão e, inevitavelmente, desfiz-me em riso. Sempre achei muito engraçada esta metáfora feita de travesseiros e de marcas, caídos quase totalmente em desuso. Hoje em dia não tenho travesseiro, apenas almofadas, tal como penso que acontece com a maioria das pessoas. Mas a expressão continua a ter o significado primordial de algo pequeno que já temos, faltando ainda a parte principal, a parte verdadeiramente importante e mais difícil de conseguir. Apenas essa parte, aqui é que está a piada. Usei a velha metáfora e desfiz-me em riso porque, ainda por cima, as minhas marcas eram um sofá de que gosto muito e o travesseiro uma casa de verdade com o jardim de verdade com que sempre sonhei. Falávamos na possibilidade de comprar um sofá maior para a sala, bem que era bom. Mas nesse caso seria necesário desfazer-me do actual sofá, que é mais uma cadeira grande, de que tanto gosto, e eu exclamei: "- Mas este sofá é para a minha casa com um jardim e uma árvore grande ao lado, para o escritório ou talvez para uma salinha pequena..." Pois é. Já tenho as marcas, só falta o travesseiro. Não sei como terá surgido a expressão, acho que a minha mãe já me contou a história, num dia em que de certeza estava de pachorra e não se importou com as minhas perguntas sobre tudo e mais alguma coisa. Imagino uma qualquer rapariga do sítio falando sobre o dote, que obrigatoriamente icluia jogos de lençois de linho, cuja pano fora comprado aos adelos e corado num corador de ervas limpinhas e depois mandado fazer à costureira e bordado a preceito pela própria rapariga ou por uma bordadeira com fama de fazer o trabalho bem feito. Imagino e sorrio e tenho saudades da palavra travesseiro e da palavra marcas, hoje em transformadas em botões, coitadas. Já tenho as marcas, só falta o travesseiro.

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