terça-feira, janeiro 29, 2008

Nós num colar de ouro

Sempre ouvi dizer isto, desde bem pequena: não se deve dar nós num colar de ouro, porque dá azar. Na verdade, as pessoas diziam "nóses", numa bizarra forma popular de construir o plural de "nó."
É uma superstição cujo resultado eu não posso afiançar, já que nunca tive colar de ouro.
Em vez de um colar, os meus padrinhos de baptismo, os meus queridos avolitos, deram-me uma pulseira, da qual muito se orgulhavam.
Quiseram dar-me algo diferente, provavelmente a pulseira até custou mais do que o tradicional colar com cruz, mas durante toda a minha infância eu perguntava à minha mãe porque é que não tinha um colar, como todos os meus irmãos. Dizem que a galinha do vizinho é sempre melhor do que a nossa, ora aí está.

Inzoneira

- "Não te faças inzoneira!" Há muitos anos, já não sei se foi no baptizado ou no primeiro aniversário da minha filha, a minha mãe deu-me este conselho com a maior das seriedades. Apercebo-me agora de que sempre o cumpri à risca.
Há poucos dias, numa roda de amigos, alguém me colocava no topo das pessoas da sua lista de conhecimentos que têm por hábito fazer comida a mais nas festas. Do género de chegar para todos e para mais alguém que apareça e de ser mais do que suficiente para todos repetirem e ainda ficar para o dia seguinte e para os outros também, graças a Deus.
Com um sorriso, recordando subitamente o velho conselho da minha mãe, respondi: "- Isso é porque não sou inzoneira."
De entre os presentes, ninguém conhecia o termo "inzoneira", ou "inzona", como se diz nalgumas zonas da Madeira. Uma pessoa inzoneira é uma pessoa que poupa na comida, que faz tudo à rasquinha quando tem convidados. O povo diz "que mais vale sobrar do que faltar" e foi isso que sempre me ensinaram. Felizmente, não sou inzoneira.

Nota:
Depois de ter escrito este texto, fui alertada para a existência da palavra "onzeneiro", que significa usurário: aquele que empresta com usura; agiota; avarento.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Raspou-se!

Uma senhora do Monte descrevia um furto à sua casa, explicando que chegou a ver o ladrão. Logo, porém, lamentava: "-Mas ele raspou-se!"
Não é caso para rir, bem pelo contrário, mas eu deixei escapar um sorriso porque não ouvia este verbo há muito tempo. "Raspou-se!" era antigamente utilizado como sinónimo de fugir, escapar. De tal forma se foi perdendo a expressão na linguagem mais moderna, que julguei tratar-se talvez de um regionalismo.
Estava enganada. O verbo "raspar-se" com este sentido está no dicionário de português e isto vem provar uma ideia que sempre me atormentou. O nosso vocabulário tem vindo a empobrecer, aos poucos vai se encurtando em vez de se alargar.
O ladrão que visitou a casa da pobre senhora, no Monte, raspou-se. Hoje sou eu que tenho vontade de me raspar, não faço ideia para onde, se alguém souber onde se apanha o autocarro para outro planeta que me avise, por favor.

sexta-feira, janeiro 25, 2008

Cantiga

Ah Júlia, ah Júlia, ah Júlia
Que é, que é, que é
Quebrastes a caneca
Já não bebes mais café

Ah Júlia, ah Júlia, ah Júlia
O que tens dentro da caixa
Uma garrafa de vinho
P'ra se levar à Camacha

(Recolhida em 1986)

Sempre gostei do nome Júlia. Antigamente havia muitas, hoje não conheço nenhuma. Ainda não se lembraram de o recuperar, tal como fizeram com outros "nomes de velha", como diz a minha mãe com muita graça.

O cantar e o bailar

O cantar vem da cabeça
O bailar das pernas vem
O cantar e o bailar
Não tiram nada a ninguém

Quem canta seu mal espanta
Quem chora seu mal aguenta
Eu canto para esquecer
Uma dor que me atormenta

Hei-de cantar e bailar
E hei-de dar palmas à toa
O cantar e o bailar
Não me tiram d'eu ser boa

Eu hei-de morrer cantando
Já que chorando nasci
Eu agora vou cantar
Já que eu cheguei aqui

Ah Maria canta e baila
E abana o teu panasqueiro
Qu' os que não cantam nem bailam
São os que morrem primeiro

(Quadras recolhidas no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço)

Na altura em que se cantavam estas quadras e na altura em que as recolhi, ainda não tinha sido editado "O Segredo". Mas o povo sabia.

A unha e a calçada

"Tenho ciumes armados
à porta da minha amada.
Rapaz, eu gosto de ti
com a unha da calçada".

Quando cantou esta quadra, a minha avolita, que Deus lhe dê o céu, fez questão de me explicar que esta é uma forma de dizer o quando não se gosta.
Não fui do tempo de andar descalça, a não ser por brincadeira. Mas quem foi desse tempo, como a minha avó, os meus pais, e os meus tios, percebe bem a metáfora e não precisa de explicações.
No Verão, tinham de correr o mais que podiam porque a calçada ardia debaixo dos pés, era impossível estar parado nela. No Inverno, era preciso tentar contornar o lameiro, as poças de água, as pedras caídas no caminho, as pinhas e os paus, era praticamente impossível evitar magoar-se. Fosse em que estação fosse, as topadas eram o pão nosso de cada dia. Unha e calçada não conseguem entender-se em situação nenhuma.
Está explicada a comparação: "Rapaz, eu gosto de ti, como a unha da calçada". Resposta nua e crua, mas clara e directa. Uma virtude de que hoje em dia muitas pessoas não se podem gabar. A covardia de nada dizer é mais confortável e as pessoas, cada vez mais, vivem apegadas à ilusão do conforto, fabricada seja à custa do que for.

terça-feira, janeiro 22, 2008

Uma frescalhada.

"- Fazem uma frescalhada e depois não comem quase nada." O tom era de alguma decepção.
Fixei a expressão mas já não me lembro qual era o manjar alvo da frescalhada.
Uma frescalhada é um grande entusiasmo, uma euforia. Talvez se tratasse de uma verdadeira sopa de trigo, uma sopa de trigo à moda antiga. Ou talvez de um fruto delicioso maduro, devidamente preparado e coberto com uma fina camada de açúcar. Ou talvez se tratassem de tomates ingleses ou de araçás. Talvez.
"- Fazem uma frescalhada e depois...." Mas a quantidade não interessa. Não é preciso muito para matar saudades do gosto da infância. Esses sabores merecem sempre uma frescalhada, e nunca perderão a magia ainda que deles provemos apenas um belisco.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Varrer dos Armários

A tradição repetiu-se e ainda bem. De 14 para 15 de Janeiro vieram varrer os meus armários. O grupo está cada vez maior, desta vez recebi 23 pessoas. Por entre bolo e licores para os adultos, sumos e bombons para os mais pequenos, vozes, cantigas e risos, passou-se mais uma agradável noite de Santo Amaro. Obrigada pela visita.




domingo, janeiro 20, 2008

Isso é mato!

A expressão "Isso é mato"continua a ser muito utilizada para mencionar algo que existe em grande quantidade. Ouço-a e sorrio. Por um lado, porque a expressão me parece subitamente desactualizada e por outro porque a nostalgia da memória me transmite sempre uma sensação de conforto. Um conforto pequenino e seguro, como o quentinho de uma lareira.
Esse calorzinho que me faz sorrir leva-me ao tempo em que "ir ao mato" era uma tarefa diária. Ainda crianças, saíamos de casa para "ir ao mato" e daí a bocado já tinhamos regressado com um pequeno molho, normalmente destinado a acender o lume no lar da minha avó, ou a deitar no chiqueiro do porco. O meu avô também usava mato para deitar nos regos, quando cultivava os poios à volta da casa.
Era fácil ir ao mato porque havia mato por todo o lado, o que não faltava nesse tempo era pinheiros. Aquilo a que chamávamos mato eram as folhas finas dos pinheiros, as faúlhas, que iam caindo ao chão à medida que secavam. Para as apanhar, usávamos uma forquilha, uma alfaia com dois ganchos, que arrastávamos no chão para reunir a faúlha aos montinhos. Depois juntávamos os vários montinhos num molho e regrassávamos a casa, contentes por estar feita a volta que nos tinham mandado fazer nessa tarde.
Havia pinheiros em todas as direcções e nós íamos variando os locais onde íamos ao mato, tal como variávamos as brincadeiras feitas entretanto. Ir ao mato era uma tarefa séria e útil mas também era uma espécie de brincadeira, porque tinha um gosto a liberdade, a despreocupação. Era um daqueles gestos que significava acreditar. Acreditar nos ciclos da natureza e nas pessoas e nas tardes e nas manhãs.
Apetece-me ir ao mato mas já não existe mato, porque já não existem pinheiros, meu Deus, já não pinheiros nem atrás, nem à frente da casa, nem aos lados, desapareceram todos. Já não existem esses locais mágicos, refúgios escuros e verdes, cheirando muito a verde, com sombras desenhadas na faúlha pelos raios de sol que se escapavam por entre as copas das árvores tranquilas.
Sinto os cheiros, sinto a aspereza da faúlha bem seca, sinto os pequenos ruídos, de pequenos ramos que se partiam sob os nossos pés, sinto a leveza dessa tarefa que podia ser também uma brincadeira. Mas tenho de fechar os olhos porque nada está lá, nada. E de repente alguém diz, com a sua sabedoria noutros tempos aprendida "Isso é mato" e eu acordo desse quentinho que parece uma lareira acesa mas não de uma pequena memória. Sorrio então. Sorrio e digo que sim, é verdade: "Isso é mato."

sábado, janeiro 12, 2008

Decerto que vai apaixonar.

-" Decerto que vai apaixonar".
Estávamos a falar de um cão. O Rufa vive sozinho, amarrado por uma corrente, junto à casa do meu tio Catorze e da minha Tia Salomé, que Deus lhes dê o céu.
Um dia destes, soltou-se. Não cabendo em si de contente, veio às carreiras até a casa dos meus pais juntar-se ao irmão, Rafa. Saltou, correu, fez piruetas no ar, atirou-se às visitas à procura de mimos.... Foi uma autêntica festa, que só durou um dia, até ao meu pai ter resolvido o problema da corrente rebentada.
No momento em que foi amarrado junto à sua casota, no terreiro da casa abandonada onde não passa quase ninguém e que ele guarda com tanto esmero, dando sinal à menor aproximação, o Rufa calou-se. Meteu-se dentro de si e não emitiu um som.
Ali ficou, quieto. Simplesmente, deixou de ladrar e essa foi a forma que encontrou de entristecer.
- "Decerto que vai apaixonar" - exclamou a minha mãe, fazendo acordar em mim a memória desse verbo de antigamente. Apaixonar, usado assim, na forma de um verbo intransitivo e não reflexivo como se usa no caso da paixão amorosa, significava entristecer de morte.
A minha avó, sempre que via alguém muito triste, de uma tristeza sem tamanho e sem fundo, exclamava, numa pergunta que não exigia resposta: " Será que ela/ele vai apaixonar?"
E se estivesse de pachorra, contava casos de pessoas que tinham apaixonado e acabaram por morrer. "- Apaixonou, criou uma postema e morreu." Eu sempre acreditei nos saberes da minha avó. Desde essa altura, sei que é possível morrer de tristeza.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Levantada

O contrário de acervada. Dito em tom de crítica, sempre. Antigamente, claro está. Porque hoje em dia, ser levantada é mais giro, está mais na moda, é mais bem visto do que ser "acervada".
Nunca ouvi o adjectivo no masculino. Ora bem.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Acervada

Nalgum tempo (a minha avó dizia sempre assim, em vez de dizer antigamente) este era um dos melhores atributos que uma rapariga podia ter. Ser acervada era uma característica essencial, talvez a mais essencial de todas, pois era a garantia de um bom casamento, segundo os parâmetros da época e o julgamento do povo. As raparigas acervadas não saíam desnecessariamente, nem falavam com estranhos, nem se dedicavam a olhar para os rapazes indiscriminadamente.
Uma pessoa acervada era, sobretudo, uma pessoa sossegada.
Mas no caso dos rapazes, ser acervado não era um adjectivo tão elogiado como no caso das raparigas, acho até que acabava por ser um pouco pejorativo. Os rapazes queriam-se mais extrovertidos, despachados, talvez até um pouco atrevidos; se fossem quietos demais, se escolhessem o aconchego do lar em vez das idas à venda ou aos arraiais com os amigos, em breve alguém começaria a "fazer pouco" e nenhuma rapariga o aceitaria.
Há muito tempo que não ouço o adjectivo "acervado/a" ser utilizado na linguagem corrente. É um facto. E não foi só a linguagem que caiu em desuso, foi também o comportamento.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Burricar ou dizer burridades

Antigamente, as pessoas burricavam. Passavam horas a dizer burridades, em longos serões, à volta da mesa iluminada por uma luz de petróleo.
As pessoas divertiam-se a burricar. E sabia tão bem! Sabia bem o calor humano à volta da mesa ainda com migalhas de pão preto já duro e com os pratos a cheirar à massa com couves que servira de ceia.
Burricar é dizer asneiras. E tudo, tudo mesmo, mesmo tudo, servia de pretexto para garantir o entertenimento necessário à vida, nessa altura em que não havia televisão, nem livros, nem computador, nem telemóvel, nem leitor de Mps nem nada do que existe agora.
Eu lembro-me de não termos luz eléctrica em casa. De não termos televisão. De não termos giradiscos. De não termos nenhum livro, à excepção dos livros da primeira e da segunda classe, sendo que o da primeira tinha sido meu no ano anterior e estava a ser usado pela minha irmã do meio e no ano seguinte, quando eu tivesse o da terceira, passaria para a minha irmã mais nova.
Lembro-me de ver os adultos, depois de um longo dia de trabalho e de inúmeras dificuldades, a rirem muito com as burridades que inventavam para dizerem uns dos outros.
Num tempo anterior, na juventude dos meus pais e dos meus tios, altura em que as famílias eram muito mais numerosas, burricava-se muito mais. As burridades eram o pão nosso de cada dia, e era isso que tornava a vida mais fácil de ser vivida, essa alegria gerada pelas coisas mais insignificantes e impensáveis.
Às vezes metiam-se com os namoricos uns dos outros, jurando a pés juntos que certa rapariga estava interessada em determinado rapaz ou vice-versa e que os tinham visto olhar um para o outro no adro da igreja ou numa qualqquer encruzilhada de caminho. Às vezes limitavam-se a imitar formas de falar, sobretudo se a pessoa fosse fanhunga ou tivesse outra qualquer característica fora do normal, formas de andar ou certos jeitos. Às vezes peguilhavam com pequenos episódios insólitos, ou recordavam coisas passadas há muito ou há pouco tempo.
Fosse sobre o que fosse, burricar sabia bem.
Hoje em dia não há tempo, nem pessoas suficientes, para ocupar os serões a dizer burridades. A única excepção é quando os emigrantes da família regressam por breves períodos e nos sentamos à volta da mesa do jantar, e de repente somos mais, e dá jeito recordar episódios insólitos e características estranhas e peguilhar com isto e com aquilo. Nessas alturas, sim burricamos. E sabe tão bem e tenho tantas saudades.

quarta-feira, janeiro 02, 2008

O Biquica

- "É como o Biquica!" Uma vez mais, deparo-me com esta personagem, que não sei quem é. Eu ma vez mais, fico curiosa. Pergunto quem era, deve ter sido alguém esse tal Biquica, e de certeza que tem uma história. Mas uma vez mais, em vez dessa informação, repetem-me o significado da expressão, que tem uma conotação negativa.
Quando se diz que alguém é "como o Biquica", usa-se sempre um tom reprovador.
Ora bem. Não é nada bom ser como o "Biquica": "Não sei qual é o gosto de ir para lá, de biqu'aberto." Aqui a critica aumenta de tom: "Como o Biquica."
A mulher irrita-se mas o homem não se importa de ser "como o Biquica". Indiferente à resonda, abala para o seu destino, uma casa qualquer, de um qualquer conhecido, onde há uma festa de anos ou uma matança de porco ou uma prova de vinho novo ou apenas um convívio familiar, para o qual não foi directamente convidado. Vai a reboque de outros. Não se importa de ser "como o Biquica", seja quem for esta personagem, cuja história não conheço.

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