quarta-feira, maio 30, 2007

Encantar

"Não sei como é que consegues!" A expressão é dita num tom de censura. "Encantas tudo!"
Revolvo as coisas à minha volta, irritando-me mais à medida que toco em objectos que não são o que preciso e que não sei onde está. Mas fixo o momento daquela palavra, o momento exacto em que a palavra "encantar" aparece no discurso. A descoberta tem o dom de me acalmar. Páro. Sorrio. Torno os gestos suaves. Sorrio novamente.
"Mas como é que tu consegues encantar tudo?" E eu já mais calma, contemplando. "Parece mentira!" E depois, reforçando a ideia: "Nunca vi nada assim!"
Distraída com este estranho sentido do verbo encantar, encontro aquilo que procurava, de repente, sem estar à espera, num local onde juraria que já tinha procurado mas não tinha visto.
Este "encantar" de sentido popular significa "fazer desaparecer", ou "desaparecer". Recordo a minha avó, desesperada com algum objecto momentâneamente desaparecido: "Mas onde é que aquilo se encantou?" E vejo-a também usando a mesma palavra para se referir a uma pessoa em vez de a um qualquer objecto. "A ceia está pronta e ele não aparece! Onde será que se encantou?" E referia-se ao meu avô, claro. Que saudades.
Parece que tenho esse estranho dom de "encantar, nste sentido genuinamente popular. Pego nas coisas e num único instante não sei onde estão. Procuro-as vezes sem conta e não as encontro. Desaparecem à frente dos meus olhos, como que por magia. E só aparecem quando querem, e se de facto lhes apetecer. Imagino um batalhão de objectos divertindo-se às minhas custas, num jogo dos escondidos.
Recordo histórias de encantamentos, a minha avó contava-as, mas não sei nenhuma em concreto. Uma moura encantada. Uma princesa. Como era mesmo?Havia um "encanto" que era preciso desfazer, para que ela retornasse ao mundo visível dos humanos. Havia regras a cumprir para que o "encanto" se desfizesse, como era a história?
Envolvida por estas memórias, acabo de utilizar o meu estranho dom de "encantar". Mas resolvo agora deixar que o objecto perdido se revele por si mesmo. Aguardo. Não permito que os meus gestos percam a leveza. Encanto-me, sempre, sempre, com estes múltiplos sentidos das palavras.
Encantar, encanto e encantamento. Encanto objectos, eu. Que estranho destino, quando as pessoas também podem ser encantadas e quando também nós nos podemos deixar encantar, e quando nada existe que consiga atingir a dimensão de um verdadeiro encantamento, no sentido outro, o que é hoje mais comum. Eu, porém, continuo a encantar tudo aquilo em que toco. Não, ainda não se revelou o objecto que hoje se encantou à frente dos meus olhos.

segunda-feira, maio 21, 2007

Desinfeliz.

Com um sorriso que parece quase feliz, se eu não soubesse que não é juraria que sim, dizem-me: "E a palavra desinfeliz? Acho tão engraçada!"
Sorrio com um sorriso que também parece feliz, se eu não soubesse que não o é juraria que sim, e agradeço o contributo: "É tão engraçada!"
Ser "desinfeliz" nada tem de engraçado, mas sim. É uma daquelas palavras a quem se trocou o sentido, na ingénua tentativa de o reforçar, de o tornar mais absolutamente inquestionável.
Ser "desinfeliz" é pior do que ser infeliz, eu não duvido nem por um instante; se há algo que ultrapassa os limites da infelicidade é a própria desinfelicidade, ela mesma, sozinha e excessiva, nua e sem justificações.
Quem inventou a palavra "desinfeliz" não sabia gramática. Mas sabia de algo bem mais real do que todos as gramáticas do mundo juntas. Quem inventou a palavra "desinfeliz", ainda usada em bom madeirense, sabia que as fronteiras são indeléveis, que na verdade não existem, e que a infelicidade, tal como a alegria e todos as outras emoções conhecidas e desconhecidas e os sentimentos também, todos, pode ultrapassar o imaginável.
Quem inventou a palavra "desinfeliz" não podia imaginar, porque não sabia gramática nem tinha nada de a saber, o que o prefixo "des" costuma fazer às palavras, trocar-lhes o sentido para o oposto.
Mas então....essa tal de gramática, que na verdade não interessa absolutamente nada para as questões essenciais da vida, ditaria que "desinfeliz" é um sinónimo de "feliz". Ora bem.
Sorrio. A subjectividade sempre me fascinou. Afinal as fronteiras não existem, eu sei que não, se existissem, ontem mesmo não teria jurado a pés juntos que era feliz, e hoje não me julgaria infeliz, nem sentiria um medo a crescer de mansinho dentro de mim...
Detenho-me e escolho a palavra exacta: "desinfeliz". Porque na vida não há compartimentos e tudo se dilui e se mistura nas fronteiras que em vão sempre quisemos construir. Sem sucesso.

quinta-feira, maio 10, 2007

Muito mal injusto!

"É muito mal injusto!" Virei-me para identificar a autora desta expressão, ainda tão usada no falar madeirense, e a mulher decidiu incluir-me na conversa que estava a ter com a funcionária da caixa do mini-mercado, sobre o tema dos maus-tratos a crianças.
Já foi há algum tempo, antes do desaparecimento da menina inglesa de que se fala agora em todos os noticiários e jornais. Na altura havia outro caso qualquer que tinha passado na televisão, sei que também não era o da Esmeralda, mas não me lembro qual era.
"A crianças ninguém devia fazer mal nenhum" - continuava a senhora, que logo voltava a concluir: "É muito mal injusto." Ela olhava para mim, à espera da minha indignação, e eu concordei: "É verdade."
Mas porque isso só não chegava e as duas, a senhora da caixa do mini-mercado também, estavam à espera que eu acrescentasse mais qualquer coisa, eu falei das desgraças do mundo e lamentei que tanta coisa estivesse mal, sobretudo essa, sim senhora, as crianças deviam ser poupadas às maldades, sempre, é claro que sim, e ainda por cima as coisas só pioram, se a minha avó estivesse vivia diria que nos aproximamos do no fim do mundo.
Quis concluir com a expressão acertada para resumir toda a minha indignação, quis dizer também "É muito mal injusto", porque essa é sem dúvida a melhor expressão para manifestar indignação perante a injustiça, mas em vez disso despedi-me e fui embora, afinal já estava atrasada. Então Adeus, até à próxima. E na entoação da minha voz havia uma espécie de pedido de desculpa, que presumo não ter sido entendido e assim sendo não foi aceite.
Não tive coragem de dizer alto uma expressão que me soava mal ao ouvido, que não identifiquei como estando gramaticalmente correcta, quando muito uma figura de estilo, fiquei a pensar no nome e não me lembrei, uma expressão que me limitei a registar como curiosidade linguística, a juntar ao blog, sem sombra de dúvidas.
"É muito mal injusto." Não disse, mas senti, não é isso que fazemos tantas vezes?
Quem passar pelo mundo olhando atentamente para as coisas, não poderá parar de repetir, diariamente, quase de instante a instante: "É muito mal injusto". "É muito mal injusto". "É muito mal injusto".

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