quinta-feira, agosto 31, 2006

Jogo do ramalhete

Era um jogo que divertia alguns e embaraçava outros. Rapazes e raparigas sentavam-se num carreiro ou numa roda. Um dos participantes pegava no ramalhete (um pequeno ramalho de pinheiro ou de outra árvore qualquer) e movimentando-o à frente do primeiro jogador, junto ao peito deste, dizia: " Toma lá este ramalhete/muito bem arrematado/ Vou te arranjar um rapaz(ou rapariga)/que seja do teu agrado." Dito isto, aproximava-se do ouvido e dizia baixinho o nome de um rapaz ou rapariga, conforme o caso.
Passando por todos a ieito, repetia o mesmo processo. No final, voltava ao início, ao primeiro jogador e repetia o processo. E uma vez mais ainda. No total, a pessoa que tinha o ramalhete passava três vezes junto a cada jogador, onde repetia os dizeres e lhe atribuia o nome de um rapaz ou de uma rapariga.
Passada esta fase, ia para junto do primeiro jogador e perguntava-lhe: "Qual foi o primeiro rapaz que eu te dei, para te amarrar os sapatos?" Aqui, a rapariga tinha de dizer alto o nome do primeiro rapaz que lhe tinham dito ao ouvido. Amarrar os sapatos é um exemplo. Muitos outros iam surgindo no decorrer do jogo. Por três vezes, o jogador que tinha dado o ramalhete passava ao pé dos outros participantes, com perguntas variadas, que tinham normalmente o dom de despertar o riso.
À terceira vez, a pergunta era: "Qual foi o terceiro rapaz que eu te dei para casar contigo?" As regras do jogo obrigavam a dizer alto o nome do rapaz (ou rapariga, se o jogador fosse um rapaz). E aí é que as coisas se complicavam: "A piada do jogo estava na vergonha que a pessoa passava quando tinha de dizer de rije o nome do rapaz." É que normalmente atribuam às raparigas os rapazes mais tristezinhos do sítio, e aos rapazes as piores raparigas. "Era só para atentar. Ficávamos todas tristes quando ouvíamos o nome de um rapaz de quem não se gostava."

quarta-feira, agosto 30, 2006

O jogo do ferrolho

O jogo do ferrolho era fácil e divertido. Lembro-me de jogar ao ferrolho atrás da casa dos meus avolitos, perto do lugar onde havia uma ameixeira de São João, que dava as primeiras ameixas do ano.
Para começar, uma das crianças pegava num pau e tocando com ele nas costas de outra, dizia assim: "Ferrolho, ferrolho, olhaste para mim, ceguei-te um olho."
Dito isto, atirava para longe o pau, pois o ferrolho tinha de ir buscá-lo antes de desatar a correr atrás do grupo. Quanto mais longe caísse o pau, mas tempo os jogadores tinham para fugir do ferrolho.
Já com o pau, o ferrolho começava a correr atrás do grupo, tentando apanhar uma das crianças. Bastava bater-lhe com o pau, para estar escolhido o novo ferrolho, que repetia toda a brincadeira.
Jogava-se ao ferrolho sobretudo quando estava frio. Jogava-se para aquecer. E ríamos muito, ora no papel de ferrolho, ora no papel de quem tentava escapar-lhe.
Foi a minha mãe quem nos ensinou a jogar ao ferrolho. Ensinou-nos o jogo com vagar, sem deixar escapar nenhum pormenor. Explicou tudo com o vagar de quem tinha saudades. Aproveitou também para se lembrar:"Dava-se muitos trambolhões quando se brincava ao ferrolho."

terça-feira, agosto 29, 2006

No alto daquela serra

Numa agradável troca de memórias com uma amiga, também apreciadora de todas as vertentes da nossa cultura popular, dei por mim a cantar uma das cantigas de roda da minha infância. Ela não conhecia. Voltei a cantar. E enquanto cantava vi-me de mãos dadas, numa roda constituída por outras meninas de bata branca e tranças com laços de fita, na estrada em frente da Escola do Pinheirinho, onde muito raramente passavam carros.

"No alto daquela serra,
no alto daquela serra,
está um lenço, está um lenço a acenar.
Está um lenço, está um lenço a acenar.

Está dizendo viva, viva,
está dizendo viva, viva
morra quem, morra quem não sabe amar.
Morra quem, morra quem não sabe amar.

Joelha aos meus pés e reza,
joelha aos meus pés e reza,
a tua, a tua linda oração.
A tua, a tua linda oração.

Levanta-te e dá-me um beijo,
levanta-te e dá-me um beijo,
amor do, amor do meu coração.
Amor do, amor do meu coração."

Por um momento, voltei a ser pequenina. Por um momento, fui inteiramente feliz.

domingo, agosto 20, 2006

Comprar nabo em saco

Não me lembro de alguma vez na vida ter comprado nabos. É um dos poucos legumes que nunca comprei porque o meu pai de vez em quando faz uma sementeira. E eu, nas minhas visitas quase diárias, acabo regressando a casa com dois ou três nabos fresquinhos. Põem um sabor tão especial nas sopas, que se nota logo a diferença quando, por algum motivo, não há sequer uma raminha de nabo.
Quando era criança, lembro-me de andar a brincar no terreiro e a minha mãe gritar de dentro da cozinha: " Líiiiilia, vai me arrancar um nabinho para deitar na massa." Eu deixava a brincadeira e encaminhava-me para o poio que ficava logo a seguir à "casa de lavar".
Como é mesmo que ela tinha dito? "Um nabinho". Então, para cumprir à risca a solicitação, olhava bem para o poio cheio de nabos e começava à procura de um que fosse pequenino, afinal ela tinha dito "um nabinho".
Chegava à cozinha, estendia-lhe o "nabinho" e ela: "O quê? Mas isto é alguma coisa? Isto não chega para esta panela de massa." Eu ficava confusa: "Mas a mãe disse um nabinho." "Pois disse, mas era uma forma de falar. Eu queria uns dois ou três, e maiores." Foi assim, com a simples história do nabinho, que aprendi que há "formas de falar" e que nem sempre aquilo que se diz é exactamente aquilo que se quer dizer. O meu interesse pelas palavras aumentou.
Desembrulhei agora esta memória, a propósito da expressão popular "comprar nabo em saco". Em sentido literal, eu nunca comprei nabos, muito menos em saco. Mas em sentido figurado, é óbvio que sim. Quem se pode gabar de nunca o ter feito? "Comprar nabo em saco" é deixar-se enganar, deixar-se levar. Equivale a ser ingénuo, a acreditar em algo que não corresponde à realidade. Julgar que se leva nabos bons dentro do saco e, afinal, eles não prestarem.
Por mais cautelosas que as pessoas sejam, lá vem o dia em que compram "nabo em saco". Até uma simples amizade, que se julgava simples e sincera, pode não passar de um nabo podre dentro de um saco. Dói carregar com o peso de nabos assim, mas esse é um dos inúmeros riscos de viver.

sexta-feira, agosto 18, 2006

Procurar uma agulha num palheiro

"Vais procurar uma agulha num palheiro?" Não ouvi a frase a nenhuma velhota, não senhora. Desta vez, não. Fui eu mesma que a disse a uma amiga, quando esta me revelou um projecto especial: encontrar a sua alma gémea.
Um projecto com uma base concreta, explicou: um conjunto de 15 datas de aniversário...em que supostamente terão nascido as suas almas gémeas. Ora, a coincidência fez com que uma dessas datas, que encontrou num livro de astrologia, seja precisamente a data de nascimento de alguém que já foi especial na sua vida.
"Mas isso é procurar uma agulha num palheiro!" Ou seja, é praticamente impossível encontrar. Eu chamo-a à razão e ela diz que a procura vale a pena. Volto a falar da agulha no palheiro, mas não a demovo.
Vai daí, decido espreitar o tal mesmíssimo livro. Eis as datas de nascimento das minhas possíveis almas gémeas: 6 e 12 de Janeiro; 4 e 10 de Fevereiro; 2 e 8 de Março; 6 de Abril; 4 de Maio; 2 de Junho. Se alguém vislumbrar a agulha no palheiro, avise.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Alquidar

"Quema será qu'ela alquidou aquilo?" Ouvi esta pergunta no adro da igreja, em tom baixo. Por entre vestidos de seda, sapatos de saltos e o burburinho de um casamento, prestes a sair da porta, uma mulher inclinou-se para outra e lançou a pergunta. Não estavam vestidas para a ocasião e obviamente não eram da família, embora conhecessem a noiva.
"Quema será qu'ela alquidou aquele rapaz?" A interlocutora encolheu os ombros e disse que não sabia como é que ela o tinha alquidado. "Terá sido no trabalho?" Talvez. O Certo é que alquidou. Os comentários continuaram: "Ele não é bonito, mas é muito engraçado. Tem ar de ser bom rapaz." A outra concordou: "Lá isso é verdade. Tem jeitos de ser boa pessoa, hoje em dia é difícil encontrar." A primeira continuou: "Depois de tanta coisa que ela passou, sempre alquidou alguém de jeito!" E a segunda: "Já viu quema ela tá contente?"
Os noivos sairam, entretanto, e apanharam como habitual banho de flores misturadas com arroz. Reparei no rapaz que a rapariga tinha alquidado e dei por mim a concordar com a primeira mulher. Tinha cara de boa pessoa. Depois olhei para a noiva e fui obrigada concordar com a segunda mulher: aquela noiva estava realmente contente com aquilo que tinha conseguido alquidar.
Os noivos foram à sua vida, seguidos pelos convidados. As mulheres da conversa também foram à sua vida, bem como os outros fiéis que tinham ido à missa. Eu também fui à minha vida. Fui embora, absorta nessa palavra dita tantas vezes numa conversa tão curta: alquidar.
Alquidar significa conseguir. Fui embora devagar, pensando em tudo aquilo que nunca fui capaz de alquidar, nem amores, nem amizades, nem...tantas coisas mais. O que alquidei em demasia, em desusada demasia, foram sonhos. Sonhos apenas.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Ir na romáge e na prissão

Ainda hoje ouço dizerem assim: romáge em vez de romagem e prissão em vez de procissão. Sei a forma correcta, mas tradições são tradições e dou por mim perguntando: "Este ano vai na romáge?", ou "Foi muita gente na prissão?"
Este ano, por estar a trabalhar, não fui na romáge do meu sítio, sábado passado, e também não participei na prissão de Nossa Senhora da Paz, ontem à tarde.
Não fui na romáge, mas comprei um cesto de vimes para a minha menina levar. Houve as cantigas do costume, cada sítio por sua vez, à chegada junto ao bazar. Dizem que foi bonito.
À noite, junto ao bazar, a minha menina mostrou-me onde estava o cestinho, à espera de ser rifado. Comprámos uma rifa, para quatro prémios, a saber, um casal de patos, um abóbora, um segredo e uma garrafa de vinho. Por quatro vezes, fixámos a atenção da roda que girava, mas não saiu o nosso número.
Ontem, a minha mãe foi na prissão e disse que estava muita gente. Como é habitual todos os anos, estavam os embarcados, sobretudo do Canadá.
Não fomos na prissão de nossa Senhora da Paz mas hoje, se Deus quiser, vamos na do Senhor. Hoje tem o tapete, e tem o encanto de ser o último dia de arraial. Depois, vamos comprar rifas, para ver se nos saí algum dos produtos levados pelo povo na romáge.

sábado, agosto 12, 2006

Afilhados de Nossa Senhora

"Nossa senhora do Monte
É madrinha de João
Eu também sou afilhado
da Virgem da Conceição"

Conheço esta quadra do brinco desde sempre, mas nunca me ocorreu que houvesse realmente "afilhados de Nossa Senhora." Não sei como é que me terá escapado o conhecimento deste costume. Há poucos dias, em conversa com uma amiga, ela contou-me que os dois filhos são afilhados de Nossa Senhora. Como assim?
É simples. As crianças têm um padrinho, que vai com elas à Igreja no dia do baptismo. Em vez da madrinha, é evocada Nossa Senhora, e as crianças passam a ser suas afilhadas. Lembrei-me logo da cantiga do brinco.
Na minha família não há afilhados de Nossa Senhora, se houvesse tenho a certeza que o facto teria sido alguma vez mencionado e eu não ficaria tão espantada com a revelação da minha amiga.
A minha madrinha foi a minha avó matrena, a avolita. Claro que ela não me podia dar tantas coisas materiais como davam aos afilhados outras madrinhas, as que estavam embarcadas. E não me podia dar tanta protecção como Nossa Senhora. Mas foi tão bom tê-la como madrinha. Foi tão bom ver nos olhos dela o orgulho que tinha em mim, a alegria que uma visita minha lhe dava, o carinho com que perguntava por mim. Obrigada, mãe, pela madrinha que me escolheste.

Desfolhar cedro e alcácia


Aproxima-se o dia da Festa do Senhor e eu tenho saudades de desfolhar cedro e alcácia para o tapete. Juntávamo-nos debaixo do castanheiro da Ti Carolina, sentadas no chão, para aquela tarefa sagrada, única no ano.
Os homens subiam ao cedro grande da Ti Carolina e cortavam os galhos. As mulheres e raparigas iam desfolhando, enquanto conversavam. As nossas mãos ficavam impregnadas daquele cheiro bom, ainda hoje adoro o cheiro do cedro.
Separávamos pequenos raminhos, que íamos deitando para dentro de sacos. Entretanto, alguém encarregava-se de ir colher flores, umas apanhadas dos jardins, com o ajuda das donas, outras da beira dos caminhos, como lourenços e coroas-de-henrique. Também era preciso desfolhá-las.
Rendia tanto aquele trabalho! Quando olhávamos já estava tudo desfolhado e apetecia ficar ali mais um bocadinho, à sombra do castanheiro, ouvindo o barulho da água correndo na levada, e sentindo aquele cheiro no ar.
O habital era desfolharmos cedro, mas houve um ano em que também desfolhámos alcácia, era assim mesmo que dizíamos, com um "l" na sílaba inicial. Lembro-me da novidade que foi chegarem com ramos de alcácia e explicarem como se desfolhava, separando folha a folha. O tapete com base de cedro fica mais bonito, mas a lembrança que eu tenho é que nesse ano se usaram as duas coisas: a acácia para uma primeira camada e o cedro, que rareava, colocado por cima desta, imediatamente antes das flores.
Lembro-me de andarmos a ajudar as mulheres mais velhas a fazer o tapete, na parte que cabia ao nosso sítio. Sentíamos uma grande responsabilidade, vaidade até. Íamos levando sacos de um lado para o outro, colocando flores nas formas, espalhando mais alcácia ou cedron onde ainda estava ralo.
Havia uma atmosfera única, envolvida numa mistura de cores, de cheiros e de sons: o burburinho das ordens que iam sendo dadas pelos cabeças, o sermão que ia saindo do altifalante, e ainda os ruídos das barracas e as conversas das pessoas que entretanto iam chegando porque vinham só à procissão. Vinham mais cedo e iam passeando lentamente, ao longo de todo o percurso, para irem apreciando o tapete antes do movimento.
Sempre que posso vou ver o tapete da Festa do Senhor. Mas é diferente. Já ninguém se reúne debaixo do castanheiro da Ti Carolina para desfolhar cedro e alcácia, nem no bardo a seguir à casa da senhora Conceição, para onde nos mudámos um ano, não sei precisar porquê, talvez por ficar um pouco mais a caminho, implicando portanto menos tempo a carregar os sacos até à Igreja.
O trabalho afastou-me dessas tarefas, que continuam a realizar-se por entre a mesma atmosfera de cores, de cheiros e de sons, agora a sairem da igreja nova e não da velha casa onde nesse tempo se celebrava a missa. Agora sou uma das pessoas que gosta de chegar mais cedo e dar a volta completa, para apreciar todos os tapetes antes de movimento.

quinta-feira, agosto 10, 2006

O Rabo do Gato faz hoje dois anos

O Rabo do Gato faz hoje dois anos. Obrigada. Obrigada a todos os que têm visitado este cantinho de memórias e de palavras. Cantinho de sentimentos e de olhares sobre as coisas pequenas. Cantinho de aconchego. O aconchego possível dado pelas recordações.
Obrigada. Todos os comentários foram lidos, e todos apreciei e agradeci com o coração. Por favor, continuem a vir, que a porta está sempre aberta. Façam-se de casa :)
Lília Mata

Pôr um pau atrás da porta

"Não tarda nada, vais ter de pôr um pau atrás da porta". Ao tempo que não ouvia esta expressão! Olho para a minha filha, a meu lado, e limito-me a sorrir.
À beira da minha adolescência, a minha mãe também se fartou de ouvir isto. Encontrava vizinhos e conhecidos, na missa, na cidade e nas festas e, a dado momento da conversa, lá vinha a exclamação: "Qualquer dia, vais ter de pôr um pau atrás da porta."
Eu ficava intrigada. Depois soube o que queria dizer, porque perguntei, e passei a ficar vermelha sempre que a ouvia, e sabia estarem a referir-se a mim.
Usa-se este dito quando se nota o repentino crescimento de uma rapariga, e se adivinha que, mais tarde ou mais cedo, vai começar a atrair a atenção dos rapazes.
O "pau atrás da porta" serve para afugentar os rapazes que supostamente a iriam pedir a casa dos pais, porque era assim que as coisas aconteciam antigamente.
Muitas vezes, estavam todos em casa, muito sossegados, nas lides normais do serão familiar, quando ouviam bater à porta da cozinha. "Quem será que vem pedir uma das pequenas?", dizia o pai, enquanto se levantada do banco junto à mesa, e mandava as filhas para dentro. Recebia o rapaz e aí ficava a saber quem era, e que filha lhe queria pedir.
Normalmente, ouvia o pedido e mandava o rapaz embora, dando-lha instruções para vir buscar a resposta na semana seguinte. Alguns, mais despachados, chamavam a filha em causa e, sem mais demoras, perguntavam-lhe se queria o rapaz e o assunto ficava resolvido.
Claro que alguns pais nem se davam ao trabalho de discutir o assunto com as filhas, e mandavam logo o pretendente embora com uma resposta negativa. Pode-se dizer, em sentido figurado, que tiravam o pau de trás da porta e com ele dali corriam o rapaz.
Quanto mais bonitas as raparigas, mais os pais se têm de precaver com o "pau atrás da porta", porque é de prever que suscitem muitos pedidos.
"Não tarda nada, tens de pôr um pau atrás da porta". A expressão surge em forma de aviso, ou alerta para uma nova preocupação, que surgirá com o tempo. Limito-me a sorrir. É verdade. A minha filha está crescida e bonita. Mas cada coisa a seu tempo.

terça-feira, agosto 08, 2006

Ficar para inço

No dia da Festa de Nossa Senhora da Luz, em Gaula, o meu tio José Manuel apreciou uma conversa entre duas mulheres, à qual achou piada. Quando ele ma contou, eu também achei.
Não sei se instantes antes da procissão, se logo a seguir, se noutro momento qualquer, as duas mulheres conversavam. Uma delas contava a sua história e as razões por que ali estava. Tinha estado muito doente, até teve de ser operada, e no meio da aflição em que se viu fez uma promessa a Nossa Senhora da Luz, que tem fama de milagreira.
Nossa Senhora da Luz ouviu-a e a operação correu bem. A mulher salvou-se e, feliz da vida, foi a Gaula pagar a sua promessa, um círio da sua altura levado na procissão da senhora, para além das rezas e da atenção com que ouviu a missa da festa. A outra mulher ouviu a história toda e, no final, disse assim: "Mesmo tu vais ficar p'ra inço".
O meu tio riu-se da história real e eu ri-me com ele. Mas é também triste. É triste como algumas pessoas se entretêm a ser desmancha-prazeres. Como se ocupam em destruir qualquer pequena alegria alheia, por mais pequena que seja. "Mesmo tu vais ficar para inço!"
Eu também não vou ficar para inço. Mas antes de partir tenho ainda muitas coisas para fazer e, se for preciso, farei promessas à Senhora da Luz, e irei na procissão com círios do meu tamanho. E, nessa eventualidade, se encontrar a tal mulher a quem o meu tio ouviu a expressão desta história, espero ter ainda na mão o círio da promessa, porque será mesmo com ele que lhe dou uma malha.

segunda-feira, agosto 07, 2006

Quem tem um sinal num braço, casa com um tarraço

"Quem tem um sinal num braço, casa com um tarraço". Eu olhava para os braços à procura de sinais. "E assim pequeninos também?" Ficava a olhar para a minha avó, à espera do que ela dissesse, porque seria certo, com certeza.
Mas ainda antes de ela responder, já estava eu a perguntar o que era um tarraço, afinal: "Um tarraço é um homem bêbado". Eu ficava, triste, a olhar para o sinal minúsculo que tinha na parte de cima do braço direito. "Isso é uma caganitinha de nada", dizia a minha avolita, e eu ficava mais sossegada, embora ainda com receio desse triste destino de ter de aturar um possível tarraço.
A lista continuava: "Quem tem um sinal num joelho, casa com um coelho." Eu esquecia o braço direito e concentrava as atenções no sinal que tenho no joelho esquerdo. Mais claro, redondo e perfeito, como se tivesse sido feito com um compasso minúsculo. "Um coelho, avolita?" A primeira coisa que me vinha à cabeça era um dos bichos que o meu avolito tinha na coelheira junto ao palheirinho. E então a minha avó explicava-me que Coelho também é um sobrenome de gente.
Eu não tinha mais sinais, mas continuava a perguntar à minha avolita o que aconteceria, por exemplo, a quem tivesse um sinal num pé. Resposta imediata: "Quem tem um sinal num pé, casa com um José." E na mão? "Ora, então não se vê logo? Quem tem um sinal na mão, casa com um João." "Quem tem um sinal na perna...." Este não me lembro, mas era um nome estranho que eu perguntava à minha avó que significado tinha, como é que me fui esquecer? "Quem tem um sinal na perna casa com....." Não me lembro.
Avolita, tanta preocupação com os sinais e com aquilo que eles indicavam, foi afinal em vão. Não fiques triste. Sei como davas importância ao casamento, mas não fiques. A vida não é igual para toda a gente, nem pode ser. E também ainda estou aqui, nunca se sabe. Repara, ainda tenho os sinais, que tu me ensinavas a desvendar no tempo em que tudo parecia certo.

O porco do Ti Nóbrega

Lembro-me bem do Ti Nóbrega. Foi do meu tempo.
Lembro-me da forma engraçada como contava episódios do dia-a-dia. Lembro-me de ouvir falar dos seus dotes de leitura e das tardes em que se sentava à sombra de uma ameixieira, lendo profecias de um livro que ninguém sabe qual era.
Lembro-me do jeito especial que dava à boca ao falar e lembro-me de da alcunha pela qual era conhecido. Lembro-me de passar junto à casa dele, todos os dias, a caminho da escola ou da venda.
Ora, quando era mais novo, antes destas lembranças meio apagadas que guardo na memória, o Ti Nóbrega trabalhava nos cestos, na Tenda do Ti Cláde.
Um certo dia, depois de ter ido almoçar a casa, gabou-se aos outros trabalhadores da tenda do porco que tinha no chiqueiro, a engordar para a festa.
"Aquilo é que é um porco!" Contou que tinha chegado à beira do chiqueiro e o porco estava dentro da gabana. Depois começou a sair: "Ele foi saindo, foi saindo, foi saindo...." Parece que estou a ver a cara dos colegas de trabalho do Ti Nóbrega, perante aquele porco, tão grande que nunca mais acabava de sair da gabana. Quando finalmente saiu todo para fora, ele conluiu: "Deitei-lhe três folhas de couve, ele ficou arquejando!"
Deve ter sido gargalhada geral. Imagino. De tal forma que esta expressão sobreviveu ao porco e ao próprio Ti Nóbrega, que Deus tenha a sua alma.
Sempre que alguém exagera numa descrição, seja animal, objecto, até pessoa, lá vem a expressão: "Isso é pior que o porco do Ti Nóbrega". "Foi saindo, foi saindo, foi saindo...."
A expressão final, das três folhas de couve que deixaram o porco arquejando, isto é farto, veio provar o exagero da descriçao, porque um porco tão grande como ele descrevia, com certeza não ficaria cheio com tão pouco.
"O porco foi saindo, foi saindo, foi saindo, foi saindo.............depois deitei-lhe três folhas de couve, ele ficou arquejando." É impressionanate a quantidade de vezes que esta simples história é recordada.
O povo tem um faro especial para detectar exageros, lá isso tem. E não desperdiça a oportunidade de recordar uma pessoa e uma história do passado. Lembram-se dela rindo. Era assim, com uma qualquer história que tornasse as pessoas mais contentes, que eu gostava que se lembrassem de mim.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Pelas portas....

"És minha mãe pelas portas". Pelas portas, ou seja, tal e qual. Normalmente dizem-se que sou alguém "pelas portas" para acentuar um defeito qualquer. Mas neste caso eu até sorrio. Não faz mal, mãe. Porque os defeitos da minha avolita eu não me importo de ter.
Encolho os ombros e transformo em qualidade o suposto defeito que me torna a minha avó "pelas portas". Gostava, em especial, quando a minha mãe me dizia isso a propósito do jardim. A minha avolita adorava plantas e tudo o que metia na terra pegava. Todos os dias dedicava tempo às flores, mesmo que tivesse a casa em desordem, o jantar atrasado ou até algum bordado com pressa. As flores eram sagradas e ela não abdicava desse tempo.
De vez em quando sou muitas outras pessoas "pelas portas". Quando digo que tenho saudades de comer casco de milho, rapado do fundo da panela ou outra qualquer comida que não lembraria a ninguém, sou uma tia minha "pelas portas", porque ninguém se esquece do seu estranho gosto para coisas azedas, para comida queimada, ou sei lá mais o quê.
Se guardar um segredo, passo a ser outra tinha minha "pelas portas", porque uma das suas características era não gostar de revelar nada da sua vida privada, embora adorasse saber tudo o que respeitava à dos outros.
Se sair de casa atrasada, esbaforida e a reclamar porque já é tarde, passo a ser, pelas portas, uma mulher do nosso sítio que era incapaz de sair para lagum sítio a tempo e horas. Corria sempre, numa aflição, atrás dos autocarros, gritando para que o motorista a esperasse.
Se estiver sempre a queixar-me sou outra pessoa qualquer pelas portas, se estiver com má cára, outra, e assim por diante. Não me importo de ser tanta gente "pelas portas" ao ritmo dos meus humores, gostos e hábitos.
A todas as comparações acho piada, e à expressão "pelas portas" também. Não encontro explicação para ela, nem sequer daquelas que eu própria às vezes invento. Sei que não me importo. E no caso da minha avolita, fico contente. "És minha mãe pelas portas." Ela ficaria contente se soubesse, tenho a certeza absoluta.

quinta-feira, agosto 03, 2006

O seu juizinho!

"É a vista e o juizinho. É o melhor que se temos!" Voltei-me de imediato para o lugar de onde vinha a voz. Era uma mulher de meia-idade, que continuou a falar sobre doenças e desgraças, coisas que tinham afectado familiares ou conhecidos, cada situação pior do que a outra. A interlocutora abanava a cabeça, ora de uma maneira, ora de outra, e contava também o seu rol de desgraças.
A vista e o juizinho! Muito bem visto. Nunca tinha pensado nas coisas assim. Sobretudo o juizinho. É interessante a forma como o povo coloca a palavra no diminutivo, não lhe diminuindo a importância, bem pelo contrário. Reforça o significado do juizinho, dando-lhe o estatuto de algo que precisa de ser acarinhado, como as crianças, como tudo o que é frágil.
"E ela tem o seu juizinho?" A pergunta surge quase sempre em conversas sobre pessoas idosas. Depois de abordar o estado geral de saúde, a dificuldade em andar, as dores, as doenças mais ou menos estranhas, os remédios, as preocupações e as idas ao médico, eis que vem a pergunta-chave. "- E ela (ou ele) tem o seu juizinho?" "- Lá isso tem, sim senhora, muitas Graças a Deus." "- Menos mal, sempre já é bonzinho. Lá quando uma pessoa não tem juizinho é uma tristeza...."
Conversa ouvida aqui, conversa ouvida acolá, fico eu a pensar no meu juizinho. De como quero, sobretudo, ter sempre o meu juizinho. Quando perguntarem de mim a alguém, estando eu bem velhinha e doente, espero que a parte final da conversa seja assim, como uma que ouvi há dias numa rua da cidade: "- E ela tem o seu juizinho?" "-Lá o seu juizinho ela tem, graças a Deus."

Casa nova, velho p'ra cova

"Coitada!" Falavam de uma mulher do meu sítio, que se enterrou esta semana. "Viveu tantos anos numa palhosca, em más condições, e agora que tinha um apartamento, lá foi." Tinha-se mudado no Natal para a casa nova.
Também fiquei triste. Lembrei-me do ditado que ouvia em criança e me fazia confusão: "Casa nova, velho p'ra cova".
Não é o primeiro caso de pessoas que lutam muito para ter o seu cantinho, o espaço onde esperam ser felizes e que, mal o conseguem, partem. Da forma mais estranha e absurda, levando-nos a questionar a justiça divina, desaparecem sem tempo sequer de aquecer o lugar. Sem o ter gozado como mereciam.
Eu continuo a sonhar com o meu cantinho. O tempo passa e eu sonho com o cantinho onde poderei tratar das minhas plantas e ser feliz. "Casa nova, velho p'ra cova." Quem sabe? Mas eu não desisto dos meus sonhos. Não desisto por nada.

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