sexta-feira, julho 28, 2006

Afiuzar-se.....

"Não te afiuzes muito...." Desde criança que ouço este aviso, umas vezes dirigido a outros, algumas a mim própria.
Com a sabedoria aprendida unicamente com as experiências do dia a dia, as pessoas mais simples facilmente chegaram a esta conclusão: afiuzar-se em demasia pode trazer dissabores.
"Afiuzar-se" é confiar em alguém. Recordo expressões soltas.
"Vai-te afiuzando e depois queixa-te." Ouço a voz, num tom baixo, um pouco severo mas carinhoso, e não lhe identifico o dono. Podia ser a da minha avolita, ou a da minha tia Salomé. Será a da minha mãe?
Eu sei, avolita. Eu sei, tia. Mãe, tens razão, eu sei que tens.
Mas é tão bom afiuzar-se! É bom e, apesar de todos os dissabores, de todas as decepções, de todas as lágrimas, eu vou continuar a afiuzar-me. Afiuzo-me nas pessoas. Afuizo-me na vida.

sábado, julho 15, 2006

A cadeira dos anos

A única coisa que quero para os meus anos é uma cadeira enfeitada. A mesma de sempre: a cadeira de vimes da avolita que iam pedir às escondidas sempre que alguma de nós fazia anos. Não quero mais nada. Se não fosse a existência e a memória dessa antiga cadeira de vimes, não seria necessário sequer que a data dos meus anos fosse lembrada.

Acordo num dia de sol em que faço anos e repito os gestos de todos os dias, fingindo que não sinto burburinho nenhum. Farei o que me mandarem, para longe do quarto onde ficará a minha cadeira de anos, sem ao menos achar estranha a tarefa que me for atribuída. Farei tudo com gestos lentos, para dar tempo a que enfeitem a cadeira sem pressa.

Imagino as flores com que a vão decorar. Junto à vereda da entrada, apanharão alguns punhados de corações cor-de-rosa. Com o cuidado de os colher em pequenos cachos. Assim é mais fácil metê-los por entre os buracos da cadeira de vimes. O trabalhado de vimes é uma espécie de bordado; um rendilhado forma toda a costa da cadeira, e ainda uma beira, rodeando todo o assento.

No jardim das passadas estou a ver colherem mimos, das duas qualidades; dos roxos e dos brancos, daqueles dobrados que são os mais bonitos de todos.

No jardim da frente do terreiro, tenho a certeza de que tu, mãe, hás-de cortar alguma rosa cor-de-fogo. E de tudo o mais que houver nos jardins, nos poios e nos bardos, na beira dos caminhos e das levadas, há-de haver um pouco, se for suficientemente bonito e digno de uma cadeira de anos.

Sei que ninguém se lembrará de colocar-lhe malvas porque não é bom. "Malvas são lágrimas!", sempre ouvimos dizer. Nem outras flores, que por algum motivo não combinem com a ocasião: as que deitam mau cheiro, as que murcham depressa, as que põem nódoas, as que trazem a promessa de transformar-se em frutos. Os amores-de-burro, só por causa do nome, também não sairão do seu lugar.

Toda a costa da cadeira tem flores a espreitar, e a roda de baixo também. Sobre o assento, aos lados, há montinhos de flores porque a parte do meio precisa de ficar livre. É o local reservado aos presentes. Não te preocupes com isso agora, mãe. Já me deste todos os presentes possíveis. Eu sou a que te deve muitas prendas.

Espalha os corações, as dálias e os mimos por todo o assento da cadeira de anos. Fiquemos quietas, a contemplar a tua obra-prima. E façamos de conta que os anos não passaram.


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