quarta-feira, agosto 31, 2005

Os novelos das faticeiras

Nunca percebi bem o que eram esses tais de novelos. Que forma teriam? Ou simplesmente não teriam forma? Seriam invisíveis?
O certo é que sempre ouvi dizer que as "faticeiras" só conseguiam morrer depois de terem passados os novelos a alguém. Ou seja, depois de transmitirem o seu poder a outra pessoa.
Lembro-me de estarmos uma vez em casa de uns vizinhos, onde a senhora mais idosa da casa estava deitada na sua caminho de ferro, às portas da morte, de tão velhinha que era.
Recordo a voz da mulher, na sua agonia, chamando alguém com voz sumida: " Olha, anda aqui!"
Nós ficámos morrendo de medo e não nos aproximámos da cama, com medo que ela fosse feiticeira e quisesse dar-nos os tais "novelos". Eu e as minha irmãs permanecemos no terreiro, enquanto ela chamava. Seria preferível que, no caso de ela ser feiticeira, deixasse os tais poderes a alguém da família.
Mas há um método, claro que há. Um método para que a "faticeira" possa morrer sem que alguém fique obrigatoriamente com os "novelos". Se a pessoa não quisesse ficar nom o mandado da faticeira, bastava aparar os novelos com uma peneira ou um crivo (uma joeira de joeirar trigo) e ainda uma vassoura, deitando-os em seguida no lume.

Chãos das Faticeiras

Antigamente havia "faticeiras". As pessoas tinham medo de andar de noite e aconteciam coisas estranhas, todas atribuidas às "faticeiras". Lembro-me de ouvir contar muitas dessas histórias e de também ficar com medo. Mas apenas algum. Não me lembro, por exemplo, de ter tido medo de passar em locais com terra vermelha, chamada "salão".
Nas gerações anteriores, dos meus avós e dos meus pais, os chãos de terra vermelha eram conhecidos como os locais onde as "faticeiras" se reuniam e como tal as pessoas tinham medo de lá passar.
Eram quatro os locais de "salão" por onde a minha mãe e os meus tios tinham por vezes de passar, não havia forma de escapar a essa passagem.
Um desses lugares era atrás do palheiro do Ti Manel Semião, onde era obrigatório passar na ida para a venda do China e também para a Casa do Ti João da Rocha, onde ficava a padaria. Diz o meu tio José Manuel: "Quando meu pai estava irritado comigo, mandava-me à noite comprar tabaco à venda do China. Eu ia numa carreira e vinha, com medo."
Outro desses locais predilectos das "faticeiras" era o Chãozinho do Ti Zé Coelho, na descida do Pinheirinho. O terceiro era o Chãozinho da Vintoa, quase no Caniço, local difícil de evitar porque ficava no caminho da missa. Nesse mesmo local havia uma parede então conhecida como "a parede do Cabeça Branca", porque a família que morava em frente dizia que aparecia nessa parede "uma cabeça branca".
Havia ainda o Chão da "Maceieira", na zona do Tornador, onde actualmente está em construção o novo cemitério do Caniço.
Nestes dois últimos chãos de "faticeiras" se passei em pequena foram muito poucas vezes. Mas nos outros dois, atrás do palheiro do Ti Manel Semião e no Chãozinho da Vintoa, no Pinheirinho, fartei-me de passar. Talvez me tenha cruzado com alguma "faticeira", mas não a reconheci. Devia estar disfarçada de pessoa normal. Já não existem "faticeiras" mas essa arte algumas pessoas continuam a dominar muito bem.

terça-feira, agosto 30, 2005

O penico da gaulesa

Conta-se que certa vez uma gaulesa tirou milho no penico, um objecto a que nós chamávamos bacio.
O lugar do bacio era debaixo da cama. Era preciso despejá-lo todas as manhãs, o que originava sempre discussões entre as irmãs, cada uma tentando escapar-se à tarefa.
Debaixo de cada cama havia um bacio porque nesse tempo não existia casa de banho dentro de casa, mas apenas uma casinha ou retrete, no exterior, e nalguns casos em local bastante afastado.
Na minha casa nunca houve penicos de porcelana, que eu me lembre. Eram dos normais, de plástico. Mas em casa dos meus avolitos e dos meus tios, os bacios eram de louça e tinham lindos desenhos pintados.
Voltando à gaulesa que tirou milho no penico. Conta-se que terá oferecido a comida a alguém dizendo: " Pode comer à vontade que esse bacio só foi usado uma vez, quando o mê marido teve da barriga."

O jogo do ferrolho

Ao jogo do ferrolho não brincámos. Apenas recordámos. A minha mãe e a minha tia, e mais recentemente o meu tio vindo do Brasil, lembraram-se do muito que jogaram ao ferrolho, em especial nos dias mais frios. O jogo do ferrolho envolvia uma enorme correria e era bom para aquecer.
Primeiro era preciso escolher o ferrolho. Com um pau na mão, fazendo com ele uma cruz nas costas de um dos jogadores, dizia-se: "Ferrolho, ferrolho, olhaste para mim, ceguei-te o olho." Depois o pau era atirado para longe e a malta começava toda a correr.
O ferrolho, que acabara de ser investido nesse papel, dirigia-se rapidamente para o local onde tinha caído o pau e apanhava-o. Então, começava a correr, para tentar tocar em alguém. "O primeiro que ele tocasse com o pau ficava sendo o ferrolho". Isso após a repetição da cruz nas costas e da frase característica do jogo: "Ferrolho, ferrolho, olhaste para mim, ceguei-te o olho."

segunda-feira, agosto 29, 2005

O jogo do lume

Há algum tempo, na véspera de São João, regressei à infância graças ao jogo do lume. Enquando ardiam os restos da fogueira em honra do Santo, juntámo-nos, pequenos e grandes, e brincámos.
Para o jogo do lume, cada pessoa tem de ir procurar uma pedra que marque no chão o seu posto. As pedras são dispostas em círculo no chão, e cada jogador permanece no seu lugar, na sua pedra. Todos à excepção do que fica no meio, com um pau na mão.
Lembro-me perfeitamente da minha mãe nos ter ensinado esse jogo, que tanto a tinha divertido na sua infância e juventude. O jogo do lume também nos divertiu muito no nosso tempo de meninas e agora voltou a divertir três gerações juntas.
O jogador que está no meio dirige-se a um qualquer da roda, à sua escolha, aponta-lhe o pau e pergunta: "Aqui há lume?". O escolhido aponta para alguém em frente, ou em qualquer parte do círculo: "Acolá fumega!"
Enquando a pessoa do meio se dirige para o local indicado, os outros jogadores fazem sinais entre si e vão trocando de lugar. Quem está no meio tem de estar atento para conseguir um dos lugares vagos, nos escassos momentos em que os jogadores estão a proceder à troca.
Quando consegue um lugar, há sempre uma grande algazarra. Quem fica de fora, sem lugar, tem de ficar no meio. Então, pega no pau e repete a pergunta: "Aqui há lume?" E a pessoa escolhida apontando para alguém, de preferência o mais distante possível: "Acolá fumega!"
Mais trocas e baldrocas, e mais risos de uma pessoa ficar com a barriga a doer. Por vezes na pressa da troca atropelam-se uns e outros, e não é raro ficar alguém com um pé no lugar e o outro no ar, e o jogador do meio baralhado com tanta confusão, tentando um e outro lugar e não conseguindo nenhum.
Divertimo-nos todas, desde a minha tia, com quase setenta anos, à minha sobrinha com apenas quatro. Um serão para não esquecer graças a um jogo tão simples. "- Aqui há lume?" " - Acolá fumega."Apenas duas frases, algumas pedras, um pequeno pau, agilidade e atenção. Divertimento garantido!

domingo, agosto 28, 2005

Quem come em cordeiro...

A minha menina adora bolo de bolacha. Acho que é o único bolo de que ela gosta realmente. Para lhe fazer um mimo, comprei todos os ingredientes e levei-os para casa da minha mãe, julgando que numa qualquer tarde destas férias se dedicariam as duas a fazer o tão precioso bolo de bolacha, como já aconteceu outras vezes.
Mas sucedeu que antes disso ela apanhou os pacotes de bolacha quadrada tostada e, feliz da vida, desatou a comer as bolachas molhadas no leite, diz ela que são uma delícia. Durante uns dias, fez um rico lanche das bolachas molhadas no leite. Resultado: já não há bolachas para o tal bolo. Eu fiz-lhe notar que sem as bolachas não se podia fazer bolo de bolacha, paciência.
Numa simples frase a minha mãe explicou-lhe tudo: "Quem come em cordeiro, não come em carneiro." Ou seja, quem come em bolacha, não come em bolo.
É um ditado antigo que a minha mãe usa muitas vezes: "Quem come em cordeiro, não come em carneiro." E acho que acrescentou, para tornar a situação ainda mais explícita: "Não cabem dois proveitos no mesmo saco."
Estava tudo bem explicado, não era preciso eu dizer mais nada e por isso calei-me. Fiquei calada e contente por a minha menina ter a extraordinária oportunidade de aprender estes antigos ensinamentos.

Comichão no nariz

Ontem tinha comichão no nariz. Pensei logo: "Comichão no nariz quer dizer que vou reinar". Foi o que eu sempre ouvi dizer. Comichão no nariz é sinal de que a pessoa vai reinar, ou seja vai zangar-se. Disse o pensamento em voz alta e a minha mãe comentou, num tom que denotava ironia: "Pois, é muito raro tu reinares!"
A verdade é que hoje já estou farta de reinar. E tudo por causa deste blog. Fiz uma asneira qualquer que fez desaparecer o contadador e as estatísticas, que eu tanto tinha celebrado, até tinha ficado me lascando de contente quando os tinha, um ano depois do nascimento do blog, finalmente conseguido encaixar na página. Estou tão irritada! Estou reinando, sim senhora. A tal comichão no nariz tinha toda a razão de ser. Noutro tempo, há muitos anos, talvez tivesse dito "comichão no focinho".
Lembro-me de ter ouvido e também ter usado o termo "focinho" para me referir ao nariz das pessoas e não apenas ao dos animais. Recordo expressões como: "Não mexas no focinho, vai ja lavar as mãos". Ou então, e neste caso dito talvez por um homem reinando com outro: "Quem não te desse uma tapona no focinho!" E mais, agora na voz de uma mulher agarrada ao bordado ou às lidas da casa: "Aquela tem sempre a mania de meter o focinho onde não é chamada."

sábado, agosto 27, 2005

Aqui há Gato!

Isto está mau. Apeteceu-me escrever no blog, e fi-lo com o prazer de sempre. Dois textos num dia, estava mesmo inspirada. O único problema é que eles não aparecem no blog. Estão lá, sim senhora, já confirmei várias vezes. Mas depois abre-se o blog e eles não aparecem. Aqui há gato!




Quando se levanta da cama lava os pés

Já que estou com a mão na massa aqui deixo a história de outra gaulesa. Esta nunca passou em casa dos meus avolitos. A história chegou ao conhecimento da nossa família através do Ti Cláde, que era um grande contador de histórias, o mesmo que contava o caso do homem que pegou no bezerrinho ao colo até ele ser um boi.
Pois bem, era uma mulher de Gaula que vinha da cidade para cima, e num momento de descanso, que imagino num qualquer terreiro, talvez depois de beber alguma coisa ou de ter partilhado um bocado do milho cozido do almoço, pôs-se a conversar.
Falando da filha, com orgulho: "A minha filha é muito esperta e muito limpa. Ela levanta-se da cama e lava os pés!"
Aconteceu o óbvio. A mulher continuou o seu caminho para casa mas aquilo que ela disse nunca mais foi esquecido. O Ti Cláde, com o seu jeito especial para contar histórias, registou e passou a contar o caso a filha da gaulesa que era tão limpa, tão limpa, que mal se levantava da cama lavava os pés. Ora, se ela lavava os pés mal se levantava, queria dizer que não os lavava à noite e portanto dormia com os pés sujos.
O caso da filha desta gaulesa ficou na história. A minha mãe continua a usar o exemplo para se referir a pessoas que aparentam não ser muito limpas.

Ir à missa com o fato do pai

Esta expressão deve-se à mesma gaulesa, a do relógio de quinze rebins (ou rubis, deve ser essa a palavra correcta). Na conversa que imagino no banco em frente da porta da cozinha da velha casa dos meus avolitos, para além de falar na filha e no relógio que ela queria, a mulher também falou no filho. Disse: "O meu filho é muito vaidoso. Hoje foi à missa com o fato do pai!"
A minha avó, a minha mãe e as minhas tias acharam muita piada aquilo. Porque a ideia era contraditória. Uma pessoa muito vaidosa, como ela dizia que era o filho, não usaria o fato do pai por pura vaidade. O fato com certeza não lhe acertaria na perfeição porque não tinha sido feito para ele e além do mais o cúmulo da vaidade, em princípio, não é usar roupas alheias. Naquele tempo era normal usar as roupas dos irmãos, dos pais, dos tios, ou até dos vizinhos, mas por necessidade e não por vaidade. A minha mãe conta que os meus tios não iam todos à mesma missa, para poderem usar o mesmo casaco. Vinha um da missa cedo da Camacha e cruzava-se com outro que ia para a missa do dia e aí, a meio do caminho, o que já tinha ido à missa despia o casaco e dava-o ao outro, que o vestia e seguia caminho, já mais composto. Vários elementos da mesma família também não tinham remédio senão usar os mesmos sapatos e até fatos completos, eram tempos de muita necessidade, só quem os passou é que sabe.
"O meu filho é muito vaidoso. Hoje foi à missa com o fato do pai!" Esta frase não ficou presa ao local, à circunstância e ao momento em que foi dita por uma gaulesa que andava a vender centros de seda. A frase sobreviveu a essa época de dificuldades, a essa situaçao concreta, e hoje não se resume a uma simples memória. Deram-lhe outra vida e a expressão usada pela gaulesa de que ninguém sabe o nome, continua a ser usada na minha família, em situações um pouco caricatas. Quando alguém é supostamente vaidoso mas tem atitudes contraditórias, pelo menos segundo os parâmetros de gosto de quem conhece esta história. Então, espontaneamente, ouve-se a expressão: "O meu filho é muito vaidoso. Hoje foi à missa com o fato do pai!"

terça-feira, agosto 23, 2005

De quinze rebins nunca tem!

É também a uma gaulesa que se deve esta expressão, que ainda no domingo passado a minha mãe usou com naturalidade, e sobretudo com propriedade, na situação que vou contar. Estávamos no Curral das Freiras, onde decorria a Festa do Senhor. A minha menina queria que lhe comprasse um cinto. Queria e insistia, como é próprio das crianças, parando em todas as bancas do arraial. Na primeira, o cinto custava quatro euros. Na última, já mesmo no centro da freguesia, no largo por detrás da igreja, um cinto igualzinho custava três euros.
A minha menina não desistia e a minha mãe quis saber o que se passava. Eu expliquei que ela queria um cinto que provavelmente ia meter numa gaveta e nunca ia usar, como acontece com outros, e que o cinto custava três euros. A minha mãe riu-se: "De quize rebins nunca tem!"
Também me ri, reconhecendo a expressão e o seu significado, e acabei por comprar o cinto sem mais confusões.
"De quize rebins nunca tem!" Esta expressão foi utilizada há muitos anos por uma gaulesa que pasou no nosso sítio vendendo uns centros de seda, num domingo à tarde. Em casa da minha avó, ninguém comprou os centros de seda bordada, mas a gaulesa ficou um bocado a conversar e no meio dessa conversa falou de uma filha que tinha. "A minha filha quer um relógio, mas é de quinze rebins. Olhe, de quinze rebins nunca tem!"
Ãos anos que isto foi! A minha mãe era ainda solteira e as minhas tias também. Nunca se esqueceram da história do relógio da filha da gaulesa porque um relógio de quinze rebins (é assim que a minha mãe diz, não faço ideia do que são esses tais de rebins) era o mais fraco que havia naquele tempo. Acharam tanta graça que passaram a utilizar a expressão em casos como aquele do domingo passado no arraial do Senhor, no Curral das Freiras, em que eu não queria comprar um cinto de três euros, provavelmente uma das coisas mais baratas à venda no arraial.
"De quinze rebins nunca tem!" Admiro a inteligência colectiva familiar que fixou esta expressão e tão sabiamente a transformou numa figura de estilo.

segunda-feira, agosto 22, 2005

As asas das xícaras

É uma entre muitas histórias de gaulesas e gauleses que ouço contar desde a infância. Uma história simples e curta, que garantem ser verídica e que sempre vi arrancar gargalhadas de todas as vezes que a ouvi contar.
Ora bem, um dia uma gaulesa foi à cidade comprar xícaras. xícaras e não chávenas. Xícara é uma palavra que continuo a ouvir diariamente em casa dos meus pais, um dos raros casos em que a palavra que aprendi ficou a salvo, guardada na atmosfera aconchegante da cozinha, embora em espaço renovado.
A gaulesa chegou à loja e pediu ao vendeiro as xícaras que queria comprar. O vendeiro foi buscar as xícaras e colocou-as em cima do balcão. Calhou de ficarem com as asinhas viradas para a esquerda.
A gaulesa olhou para as xícaras e disse: "Eu não quero essas. Eu quero é com as asinhas para a direita." O vendeiro não fez mais nada: pegou nelas e levou-as dali. Regressou momentos depois com as mesmas xícaras mas desta vez teve o cuidado de colocá-las com as asinhas para a direita.
A minha mãe volta a rir-se com a história, que diz ter sido verdade, embora pareça mais uma anedota. "Olha, depois eu já não sei bem como foi, não sei se ele levou mais dinheiro por terem a asa para a direita." Isso ainda teria mais piada, pois sim.
O meu pai e o meu tio ouvem a história e voltam a rir-se, enquanto eu, claro está, a anoto num pequeno papel para não me esquecer, apesar de já a ter ouvido não sei quantas vezes ao longo da minha vida.
Também me divirto. E fico com vontade de chegar a casa, entrar na cozinha e arranjar forma de utilizar a palavra acordada pela história da gaulesa. A palavra xícara. Dita de forma rápida, de forma a soar como antigamente. "Passa-me uma xícra." "Tem cuidado que a xícra 'tá quente."
"Não derrames o leite da xícra." "Eu aqui sem poder e ele não me lava nem sequer uma xícra."

domingo, agosto 14, 2005

Quem tem um mato na cabeça

"Quem tem um mato na cabeça
Amanhã não vai à missa!"

Ontem reparei que a minha menina tinha um mato na cabeça, uma pequena linha, e enquanto a sacudia, de imediato recordei este refrão. "Quem tem um mato na cabeça amanhã não vai à missa." Ela abriu muito os olhos e exclamou: "A sério? Mas que bom." Ficou contente com uma ameaça que no meu tempo teria originado muita tristeza.
A ida à missa era um ritual aguardado todas as semanas com o maior entusiasmo, um momento desejado como poucos outros. Ir à missa era um acto solene e qualquer domingo normal tinha todo o ar de ser um dia de festa, não importando que tivessemos de percorrer a pé três quartos de hora para chegar à igreja. A hipótese de faltar à missa não se punha por nada, ainda que estivesse um temporal.
Era apenas ao domingo, para irmos à missa, que podíamos vestir a nossa roupa melhor. Por isso mesmo às melhores roupas chamávamos "roupas da missa", por oposição às "roupas de andar em casa". Era uma azáfama a que se vivia todos os domingos de manhã, especialmente durante a adolescência, altura em que começámos a preocupar-nos de forma excessiva com a aparência.
É compreensível, portanto, que nós detestássemos ter algum mato na cabeça. "Quem tem um mato na cabeça, amanhã não vai à missa." A ameaça deixava-nos tristes e a primeira coisa que fazíamos era tentar livrar-nos do tal mato.
Lembro-me ainda de outra ameaça relacionada com a missa que simplesmente nos aterrorizava. Dizia-se às crianças que quem dizia palavrões não ouvia missa no domingo seguinte. Que pavor! Eu imaginava-me na igreja a olhar para as pessoas à minha volta e sem conseguir ouvir uma palavra, subitamente surda. Era uma crença que fazia qualquer criança pensar muito bem antes de dizer algum palavrão.
Como era bom ir à missa, vestir vestidos bonitos e os melhores sapatos, encontrar pessoas, especialmente as raparigas e os rapazes da nossa idade, passar na venda e invariavelmente entrar e com sorte ter direito a algum rebuçado, e depois percorrer a longa vereda, procurando as sombras no Verão e andando mais depressa no Inverno para escapar à Chuva. Que nada ameaçasse esse ritual que tornava todos os domingos em dias especiais.
Como são diferentes os tempos. Eu continuo a ir à missa, mas as roupas já não são especiais, já praticamente não há diferença entre as outras roupas e as roupas da missa, embora em relação à minha menina eu tenha sempre a tendência de guardar para o domingo as suas melhores roupas, pelo menos na minha opinião que na maioria das vezes não coincide com a dela. Mas é quase sempre a custo que consigo arrastá-la para a igreja. Se ela ficou contente com a rima do mato na cabeça, espero ter cuidado para nunca me lembrar de lhe contar o que se dizia no meu tempo a propósito dos palavrões. Mais vale prevenir do que remediar.

sábado, agosto 13, 2005

Uma enxovia!

Tenho a casa numa enxovia! Se ainda cá estivesse, a minha avó diria assim, de certeza absoluta.
Ouvi-lhe esta palavra vezes sem conta, para se referir a um qualquer lugar sujo, desarrumado, mal arranjado. "Uma enxovia é uma coisa terrível", precisa a minha mãe, herdeira dessa genuina forma de falar.
A minha casa está uma autêntica enxovia. De tal forma que não sei por onde começar. Não sei se comece pelo pico da roupa para engomar, que balança devido à altura, se pelas janelas que precisam de ser lavadas, ou pelo chão que necessita urgentemente de ser limpo.
Muito precisa de ser feito, mas pode ser adiado mais uns minutos, para que eu registe a memória desta palavra que há muito não usava. Uma enxovia! Que saudades tenho de ouvir a voz da minha avó, ainda que fosse a dizer esta palavra nada bonita.
Consultei o dicionário de português e a palavra "enxovia" existe mesmo. Vem lá explicado que tem origem no árabe al-jubbia, poço. Significa: prisão térrea e subterrânea, escura e húmida.
Não é totalmente descabido o sentido com que é usado na minha terra. Lá no fundo, no subterrâneo escuro e húmido, consegue-se descobrir alguns pontos de contacto. Mas isso agora é secundário. Tenho a casa numa enxovia e falta-me tempo e falta-me paciência. Aqui del rei! Não gosto desta enxovia. A única enxovia de que gosto é a que imagino ouvir no timbre de voz que a minha avolita usava quando estava aborrecida com uma situação que não lhe agradava.

sexta-feira, agosto 12, 2005

Rafael do Quartel

Rafael do Quartel
Deu uma malha na mulher
C'o cabinho da colher

Cá está uma pequena lengalenga que eu não conhecia. Nunca a disse em criança mas também não me lembro de ter conhecido algum Rafael.
Como tudo era simples nesse tempo em que bastava um nome, e mais duas ou três palavras a rimar, para criar uma diversão.
Uma diversão que seria repetida vezes sem fim, atormentando quem sabe outra criança, um qualquer adulto ou talvez algum velhote que passasse no caminho, com um saca de pernil e um molho de lenha ou de comida às costas, numa posição em que nada podia fazer para se defender, a menos que descansasse a carga.
As lengalengas, mesmo pequenas como esta, estavam destinadas a passar de geração em geração, em memórias contadas, tal como esta me chegou, a propósito de um qualquer episódio do dia-a-dia, talvez a propósito de um nome.
Este é um momento solene e eu estou contente por participar nele. O mais provável é que esta pequena lengalenga do Rafael do Quartel esteja a ser posta em palavras escritas pela primeira vez em toda a existência.

terça-feira, agosto 09, 2005

Mandar no marido

A minha menina tem o segundo dedo do pé um pouco mais comprido do que o dedo grande. Com a habitual curiosidade perguntou-me porquê: "Mãe, porque é que o teu segundo dedo é mais pequeno do que o grande mas o meu é maior?" Enquanto perguntava olhava para os pés descalços, ambos juntinhos e de dedos esticados, para ilustrar a pergunta, para provar que era verdadeira aquela constatação.
Então lembrei-me do que se dizia, que o segundo dedo maior do que o grande significa que a mulher vai mandar no marido. Lembrei-me e ri-me para dentro, em simultâneo com a resposta que saiu de forma automática: "Dizem que as mulheres que têm o segundo dedo maior do que o grande, é porque vão mandar no marido."
A minha resposta, que era mais uma memória do que uma verdadeira resposta, foi suficiente para a satisfazer. Ficou bem contente: "A sério? Que bom! Assim eu vou ter tudo como eu quero." E antes que eu tivesse tempo de organizar as ideias, de pensar como lhe dizer que ninguém deve mandar em ninguém, especialmente o marido na mulher ou a mulher no marido, ela desapareceu para o quarto, já distante daquela dúvida, embrenhada numa qualquer ocupação.
Sozinha, dentro ainda da surpresa daquela curiosidade infantil, descalcei as sandálias e pus os pés direitos, esticados e juntos, tal como tinham estado os da minha menina momentos antes. É verdade, os dedos maiores dos meus pés são mesmo os dedos grandes. Por mais bem esticados que estejam, os segundos dedos são bem mais curtinhos. Não mando em ninguém. Mas também ninguém me manda, ao menos isso.

segunda-feira, agosto 08, 2005

Bichos anunciadores de presentes


Hoje recebi um presente embora nenhum gato tivesse olhado para mim logo depois de se ter lavado como fazem os gatos, lambendo as mãos e a cara.
Eu não sabia desta crença. Não me lembro de alguma vez a ter ouvido e até pensei que a minha mãe, o meu pai e o meu tio estivessem a brincar comigo, por saberem deste meu gosto por palavras, dizeres e tradições.
Era a sério, afinal. Quando um gato olha para nós imediatamente a seguir a esse hábito de higiene, está a indicar que vamos receber um presente.
O animal que eu recordo como anunciador de presentes e o bicho-frade, um insecto pequeno, todo verde, que costuma aparecer muito nos silvados no tempo das amoras e também no feijão. Vem-me logo à ideia o cheiro característico desses pequenos bichos-frade, não lhes conheço outro nome. A minha avolita dizia que era bom encontrar um e que nunca o devemos matar. Devemos guardá-lo e não dizer a ninguém. Devemos guardar segredo do nosso bicho-frade para recebermos o anunciado presente.
A minha mãe conta, e hoje voltou a fazê-lo no seguimento da conversa, que em pequena sempre que encontrava um bicho frade a minha avolita o guardava dentro de um papelinho, que amarrava com uma linha. Não eram tempos de desperdiçar nada, nem sequer a possibilidade de um presente.
São outros os tempos mas um presente sabe sempre tão bem! A minha amiga Rosa ofereceu-me umas sandálias cor-de-rosa, muito bonitas, como presente de anos, que já fiz há três semanas. Por isso mesmo foi um presente inesperado. Não foi anunciado por nenhum gato que para mim olhasse depois de se ter lavado, nem por nenhum bicho frade encontrado num silvado. Foi um presente não anunciado e ainda soube melhor.

domingo, agosto 07, 2005

Comichão na mão

Tenho comichão na mão direita. Esperá lá....isto tem um significado qualquer. Tem, sim senhora! Comichão na mão direita é sinal de que vamos receber dinheiro. Uma boa notícia, já estava a fazer falta. Espera lá....agora tenho comichão na mão esquerda. Na mão esquerda, sempre ouvi dizer, significa que vamos perder dinheiro. Ganho com uma, perdido com a outra, muito engraçado, sem dúvida nenhuma.
Até já estava a pensar jogar no euromilhões, e aí talvez se confirmasse não um mas dois ditados mais antigos do que o norte. Primeiro, o da comichão na mão direita e depois um outro que diz: azar no amor, sorte no jogo. Eu nunca tive o hábito de jogar, à excepção de uma ou duas vezes no jodo do bicho por causa de um sonho qualquer que afinal não era palpite acertado. Mas quem sabe? Talvez se viesse a confirmar a inabalável verdade desta crença, ou talvez a excepção - azar nos dois campos - viesse apenas confirmar a regra.
Ainda não tinha tido sequer tempo de pensar isto tudo quando a tal comichãozinha passou da mão direita para a mão esquerda. Muito mal injusto. A vida às vezes só fazia bem em distrair-se um bocadinho, assobiar e olhar para o lado, para deixar um pessoa entreter-se um pouco com uma ilusão. A minha, se a vida me desse essa oportunidade, posso garantir que não seria a de ganhar dinheiro ao jogo. Antes estar do lado daqueles que ao jogo sempre têm azar, e a nenhum ditado são excepção.

sábado, agosto 06, 2005

Atrasar o casamento

Lembro-me pelo menos de quatro coisas que "atrasam o casamento". Cresci ouvindo essas sentenças populares, em jeito de aviso ou de conselho, para que não acontecesse a desgraça de ficar solteira.
Quando saía de casa para algum lado, apressada, com um bocado de pão na mão para ir despachando caminho abaixo, ouvia o aviso da minha avó, para quem uma mulher não tinha vida se não casasse: " Quem come pelo caminho não se casa." Eu achava engraçado e perguntava se era mesmo verdade. Mas a minha mãe dizia que se tinha fartado de comer pão quando ia para a missa, pelo caminho da Rocha, e tinha casado.
Outra coisa proibida era "comer tudo do prato". Normalmente na sequência desta sentença ouvia contar a história da Maria da Pelhanca, que fazia visitas a casa da minha avó e rapava o prato do milho que lhe ofereciam, mas sempre com o cuidado de deixar um cantinho; tinha fome para comer tudo, mas a superstição mandava que deixasse esse bocadinho de milho no canto do prato.
Deixar uma gaveta aberta também "atrasa o casamento", é o que sempre ouvi dizer. Talvez aqui esteja a verdadeira razão de todos os pés amarelos deste mundo, quem é que pode jurar o contrário?
Ter maravilhas à porta tem exactmente o mesmo efeito. É uma flor que as raparigas solteiras devem banir dos seus quintais. Nós nunca ligámos a isso e no nosso jardim sempre cresceram maravilhas bonitas, sobretudo à sombra da "casinhinha das flores", um pequeno telheiro de madeira que existiu à frente da casa para guardar as plantas mais sensíveis, em especial as avencas e os fetos de metro.
Nós achávamos que isso era uma baboseirada e nunca nos tentámos livrar das nossas maravilhas. Mas lembro-me de um dia termos comentado sobre essa superstição numa vinda da missa com uma rapariga que tinha a entrada cheia de maravilhas. É claro que pensámos que ela também não ligava a essas coisas.
Na ida para a missa do domingo seguinte reparámos que as maravilhas tinham desaparecido. A verdade é que ela casou, sim senhora, embora se tenha divorciado depois, e sobre isso não há qualquer ditado popular, já que todos foram inventados nos tempos em que os casamentos eram talhados no céu e ninguém na terra os podia desfazer.
Eu nunca tive a preocupação de deixar um pouco de comer no cantinho do prato, comi muitas vezes pelo caminho, sempre tratei com carinho as maravilhas, e quanto a gavetas abertas não sei mas o mais certo é que em momentos de pressa alguma não tenha ficado devidamente fechada. Está tudo explicado e não há mais conversa!

sexta-feira, agosto 05, 2005

Estar se lascando de contente!

Estou me lascando de contente! Foi a expressão que me ocorreu quando, finalmente, consegui colocar uma fotografia no blog, bem como um contador de entradas e as devidas estatísticas. Fiquei me lascando de contente! Este cantinho existe há um ano e até agora não tinha conseguido colocar nada para além de texto. Funciono ainda à moda dos tempos que relato na maioria das histórias. Toda ligada às palavras e uma autêntica "naba" no que respeita aos incríveis e contínuos milagres da tecnologia.
O contador ficou num lugar esquisito e ainda não sei como colocar à direita uma lista com links para páginas que se relacionem com o tema do meu blog. Tantas coisas que ainda não sei.!Mas ontem dei uma pequeno passo e fiquei me lascando de contente. Um passinho minúsculo com a ajuda do Neco, que é o gato de uma vizinha dos meus pais, que consegui apanhar numa expressão que dispensa mais palavras para ilustrar o ditado: "gato escaldado de água fria tem medo."
Eu estou bem escaldada da vida e mesmo sem querer dou por mim com a mesma expressão do Neco, desconfiada, de pé atrás. Mas agora isso não interessa. Afinal estou me lascando de contente! O meu blog vai passar a ser mais colorido, talvez o resto também, há coisas que pegam como as bexigas e o sarampo.

quinta-feira, agosto 04, 2005

Gato escaldado....de água fria tem medo!


Ficar com os pés amarelos

Ficar com os pés amarelos era a pior desgraça que podia acontecer a uma rapariga. Ficavam com os pés amarelos as raparigas que não se casavam e esse destino tornava-se claro muito cedo, aos vinte e tal anos. Rapariga que chegasse aos vinte e tais sem noivo, muito dificilmente conseguiria escapar ao destino dos pés amarelos, que era outra forma de dizer "ficar para tia". Na minha terra dizia-se "ficar com os pés amarelos", expressão que me intrigou desde muito nova. Pedia explicações à minha mãe e por mais que ela me tentasse explicar, aquilo continuava a me fazer confusão. Então é isso, as galinhas mais velhas têm os pés mais amarelos, pois é! E lá ia eu para o pé do galinheiro, analisar as patas das frangas mais novas e das galinhas mais velhas, para detectar as variações dos amarelos.
Em casa da minha avó ninguém ficou com os pés amarelos. Todas as minhas tias, e também a minha mãe, começaram a andar para casar na idade normal para a época, por volta dos dezoito anos, e também andaram para casar o tempo normal para a época, durante dez anos no caso da minha mãe. Mas aconteceu a duas amigas e vizinhas da minha mãe ficarem com os pés amarelos. Uma porque nunca apareceu interessado e outra, pelo contrário, porque apareceram muitos mas ela foi-se fazendo esquisita e pondo defeitos em todos, até que chegou aos vinte e tal anos e já era demasiado velha. De repente começaram a apontar-lhe como possíveis noivos os homens que iam ficando viuvos e esse era o indicador de que já tinha passado da idade de arranjar rapaz solteiro.
A possibilidade de "ficar com os pés amarelos" era uma coisa levada muito a sério. Era levada tão a sério que para além dos cochichos, comentários e bilhardices, durante manhãs, tardes e serões inteiros, as possíveis vítimas dos pés amarelos ainda tinham de aturar brincadeiras como a que fizeram dia dos anos a uma amiga da minha mãe: como presente de anos ofereceram-lhe anil. O anil que se dissolvia em água para tirar o tom amarelado da roupa branco. Coitada.
Então eu lembrava-me de um homem do sítio que já tinha perto de uns cinquenta anos e nunca tinha casado e perguntava se ele também tinha ficado com os pés amarelos. Mas parece que a desgraça era só para as raparigas, pois os homens que não casavam limitavam-se a ficar solteiros, ninguém deles dizia que tinham ficado com os pés amarelos.
Em criança, quando ouvia alguém falar em mulheres de pés amarelos, ficava sempre com pena. Mal sabia eu que viria a ser uma dessas mulheres. Dos pés amarelos não me livrei. Do que me livrei foi de ficar para tia, há expressões às quais é muito mais fácil de dar a volta do que a outras.

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