segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Ver o passo do francelho

"Deixa, para vermos o passo do francelho". Esta expressão deve-se ao meu tio João, o mesmo que matou o pintainho, e continuamos a usá-la amiúde no meio familiar.
O meu tio e a minha mãe, os mais moços da casa, foram deixados a cuidar de uma ninhada de bisalhos, porque o perigo espreitava permanentemente dos céus, com a forma de algum francelho ou de alguma manta.
A tarefa era simples: bastava que as crianças ficassem no terreiro, perto do local onde os bisalhos depenicavam folhas de couve e rolão, junto à galinha-mãe, sempre de olhos atentos ao céu. Quando viam aproximar-se alguma dessas aves de rapina, começando a peneirar por cima dos bisalhos, em jeito de os ir apanhar, tinham de começar a fazer muito barulho, apupando e batendo em tachos, para as espantar.
Ficaram os dois em casa, de guarda à ninhada de pintos, e quando se aproximou o primeiro francelho, a minha mãe preparou-se para seguir à risca a tarefa: desatou a apupar e a bater nos tachos, chamando a atenção do irmão para que fizesse o mesmo. Ele, irritado, virou-se para ela e mandou-a calar: "Shuuuu, sua tonta, cala a boca. Não faças barulho que é para vermos o passo do francelho."
O meu tio, aventureiro e curioso como era, não se importava de sacrificar a vida de um bisalho, se isso lhe permitisse observar de perto e com todos os pormenores, o método utilizado pelos francelhos e pelas mantas para capturarem o almoço. "Deixa, para vermos o passo do francelho."
Não me lembro bem do final da história, apesar de a minha mãe a ter contado vezes sem fim, a nosso pedido, durante toda a infância. Penso que o francelho se espantou com o barulho da minha mãe, para grande frustração do meu tio, mas isso não interessa para o caso, que é o sentido com que, ainda hoje, utilizamos esta expressão.
"Deixa, para vermos o passo do francelho". Hoje são poucos os francelhos. Quando dizemos isto referimo-nos sempre a pessoas e à decisão de ficarmos quietos no nosso canto, na expectativa de ver como irão actuar, atentos para analisar-lhes o passo seguinte, sem fazer barulho, tal como o meu tio queria fazer em relação ao francelho, ainda que isso pudesse custar a vida de um pequeno bisalho.
O país acordou totalmente diferente, do ponto de vista político. E agora? Haverá algum milagre? A crise vai desaparecer? Os desempregados vão encontrar emprego? O ordenado vai render mais? Ocorre-me apenas a frase do meu tio: "Deixa, não faças barulho, que é para vermos o passo do francelho."

Comments:
Muito bom!
 
É engraçado, mas revisito a minha infância em todas as crónicas trazidas aqui a este espaço deveras interessante. Adorei relembrar o nome dos pintainhos: bisalhos! Existia outro igualmente utilizado: pinecos! Quanto à ideia do tio, seguia as leis da natureza, perfeitamente desculpável ;)
 
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